Utilizado no início da colonização, o caravelão foi substituído pela sumaca, de origem holandesa

(27/6/1999)

O domínio dos mares


EVALDO CABRAL DE MELLO

No primeiro século de colonização, as comunicações marítimas entre pontos do litoral brasileiro dependeram de uma improvisação, o emprego dum tipo de barco, o caravelão, concebido não para a cabotagem, mas para a ligação, em alto-mar, entre os navios de uma frota. O aumentativo não deve desorientar o leitor. O caravelão não era uma caravela grande, mas sua miniaturização.

Graças a ele, esboçou-se na nossa costa uma incipiente diferenciação, que já se consegue discernir na obra de Gabriel Soares de Souza, que distingue os portos apenas acessíveis ao que designa por "navios da costa" ou "caravelões da costa", expressão que utiliza sinonimicamente, e os portos abordáveis pelas embarcações que faziam a navegação com o Reino, os "navios de honesto porte", os barcos de "mais de 200 tonéis" ou mesmo de "cem tonéis" ou entre "cem tonéis até 200".

No caso do caravelão, a especialização foi antes espacial do que funcional. Ainda insuficiente para gerar um tráfego importante, a cabotagem podia utilizar os serviços de um tipo de embarcação criado para atender a outras necessidades. As tarefas marítimas não eram apenas as prosaicas ou rotineiras de transporte de mercadorias, mas, sobretudo, as militares, oficiais, de povoamento e conquista; e a todas elas o caravelão se prestava imparcialmente.

Mas não foi apenas essa fatigante versatilidade que tendia a desencorajar o aparecimento de um barco exclusivamente voltado para as fainas da cabotagem. Ademais da concorrência que a caravela lhe podia eventualmente oferecer nos percursos litorâneos mais longos, como a navegação da costa leste-oeste, o caravelão sofria a concorrência dos seus congêneres que, viajando do Reino de conserva com as frotas, eram despachados aos pequenos portos para recolher-lhes a carga, regressando para a jornada a Portugal. Por conseguinte, o primeiro século de colonização foi de domínio dos caravelões. As "barcas" ("barcken") citadas nos relatórios holandeses eram desse tipo, pois, como observou Carlos Francisco Moura, eles não dispuseram de palavra com que distingui-las das caravelas. Ora, a expressão desesperadoramente vaga de "barcas" era também aplicada às suas próprias embarcações de pequeno ou de médio porte.

A partir da ocupação holandesa, caiu um silêncio definitivo sobre os caravelões da costa; nas fontes luso-brasileiras, só aqui e ali aparece algum retardatário. Os anos de guerra naval haviam-lhes sido fatais. Tão exposta e vulnerável quanto a navegação oceânica, a cabotagem foi decimada pelo corso neerlandês.

Ademais, nas condições da guerra, a própria caravela atendia melhor à dispersão geográfica dos pequenos portos, de onde os luso-brasileiros procuravam, a duras penas, manter suas comunicações com o Reino, permitindo-lhes integrar os percursos costeiro e oceânico, dispensando as operações de baldeação da carga, sempre arriscadas diante da vigilância dos iates e chalupas inimigas.

Quando a navegação de cabotagem renasceu no governo de Nassau, o caravelão foi abandonado em favor de uma embarcação de origem holandesa, a "smak", logo aportuguesada em "esmaca" e, depois, em "sumaca". Aporte da civilização material dos conquistadores do Nordeste, onde se instalará durante 200 anos, a sumaca predominará no tráfego costeiro da região, para daí ganhar todo o litoral brasileiro. De Pernambuco, ela ganhou a costa leste-oeste no trajeto entre o Ceará e o Maranhão; e os percursos da Bahia às capitanias de baixo. Um documento setecentista afirma que o tráfego marítimo entre o Rio e Santos já era feito "em sumacas e outras embarcações semelhantes", linha, aliás, lucrativa, pois transportava anualmente 10 mil pessoas e rendia 40 contos de frete. Do Recife e da Bahia, graças ao tráfico negreiro, a sumaca alcançou a costa ocidental da África, se é que os holandeses já não a haviam levado originalmente para lá.

Ocorreu que, ao cabo de dois séculos nas nossas águas, perdeu-se a memória da sua origem holandesa. O almirante francês barão de Roussin, que realizou sua expedição hidrográfica ao Brasil de 1819 a 1820, mencionou-a, sem aludir à procedência, pela expressão inglesa "smack", a despeito de a língua francesa já conhecer a voz "sémaque". Segundo Roussin, tratava-se de embarcação muito encontradiça no litoral brasileiro. Um historiador da cabotagem nas ilhas britânicas, Robert Simper, observou ser a sumaca a grande esquecida dos tempos da navegação à vela. Algo semelhante ocorreu entre nós, com a agravante de que o seu desaparecimento, em meados do século 19, verificou-se antes que a fotografia lhe houvesse captado o perfil, como o fez na costa da Escócia, onde capitulou tardiamente aos concorrentes, embora Debret o fixasse precisamente na gravura que dedicou a Olinda, onde, aliás, não esteve, razão pela qual exagerou a altura das suas colinas.

A sumaca, que se espalhou por quase todo o norte da Europa, do Báltico ao Cantábrico, originara-se no litoral dos Países Baixos, em razão de cujas características físicas de pouca profundidade e extensa rede hidrográfica fora construída com vistas a integrar a navegação marítima e a fluvial. A sumaca inscreveu-se na mesma tradição da arquitetura naval holandesa que produziu a "fluyt" ou o "koff", barcos de fundo chato e grande capacidade de carga, exigências comerciais a que sacrificavam a elegância do casco, a rapidez e a maneabilidade. As sumacas operavam especialmente no tráfego entre os Países Baixos, de um lado, e Antuérpia e os portos flamengos, de outro, servindo também na carga e descarga dos grandes navios. Um dicionário de marinha de começos do século 18 distinguia o "smakschip", em flamengo "wydtschip", ou embarcação larga; e o "smalschip", ou embarcação estreita, diferença apenas de largura, a construção e a armação sendo idênticas. A distinção nascera de circunstância local, o "smalschip" sendo suficientemente estreito para singrar através das comportas de Gouda, ou Tergonde, na Holanda, ao passo que o "smakschip", mais largo, não podia utilizá-las, vendo-se na contingência de navegar por fora das muralhas urbanas, através de outra comporta.

Da Holanda, a "smak" emigrou para a costa oriental da Inglaterra e da Escócia, cujas relações marítimas com os Países Baixos foram sempre estreitas; e dali para a costa ocidental, em torno do Firth of Clyde, onde a população se adensava, como no litoral neerlandês, ao longo de uma rica rede hidroviária de rios, camboas e braços de mar. Sua grafia foi anglicizada em "smack". Na Grã-Bretanha, ela prestou-se a uma série de usos, desde a pesca e o transporte de carvão até a condução de passageiros. Foi, aliás, na região do Clyde que as sumacas resistiram mais demoradamente à concorrência da navegação a vapor. Por volta de 1920 ainda existiam naquelas paragens, embora já tivessem sido substituídas, no resto do litoral escocês, pelos "puffers", os pequenos barcos a vapor. Nos portos do norte da Alemanha elas também sobreviveram no decurso de oitocentos, como indica uma bela gravura da coleção do Musée de la Marine (Paris). Do seu papel na cabotagem européia, basta dizer que mereceu a honra de reprodução na célebre "Encyclopédie".

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