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Já
na época de d. João 3º, os portugueses viam o
Brasil como um refúgio seguro
(16/5/1999)
Um abrigo nos trópicos
EVALDO CABRAL DE MELLO
Na sua biografia do padre Antônio Vieira, João Francisco
Lisboa, cuja lusofilia era pronunciada, após acentuar que
o Brasil fora a única colônia portuguesa a preservar
"o selo da metrópole", manifestava a esperança
de que ele ainda pudesse oferecer aos lusitanos "um último
e seguro abrigo se as grandes transformações e catástrofes,
de que o nosso século oferece tantos exemplos, violando a
sua independência e nacionalidade, os obrigar a abandonar
em grandes massas o solo sagrado da pátria".
O historiador oitocentista talvez não se desse conta de que
semelhante afirmação era apenas o eco de uma crença
que já tinha curso, entre os nossos colonos de quinhentos,
acerca do papel messiânico que caberia ao Brasil nos destinos
de Portugal. O autor dos "Diálogos das Grandezas do
Brasil", por exemplo, referia haver previsto um astrólogo
da corte de d. Manuel que a terra recém-descoberta por Cabral
haveria de se tornar "uma opulenta província, refúgio
e abrigo da gente portuguesa". E na sua "História
do Brasil", concluída alguns anos depois dos "Diálogos",
frei Vicente pretenderá que, já ao tempo da fundação
de Salvador e ao longo do reinado de d. João 3º, tratou-se,
para a hipótese de invasão do Reino, da possibilidade
de passarem-se El Rei e seus vassalos à América, que
proporcionaria a base ideal para a reconquista da mãe pátria,
devido à sua posição estratégica, superior
à dos Açores, demasiado próximos, e da Índia,
demasiado distante. É preciso não esquecer que d.
João 3º reinou no período de afirmação
máxima na monarquia espanhola na Europa; que, por um lado,
e a despeito das boas relações que cultivava com o
cunhado Carlos 5º, a desconfiança com Castela, capaz
às vezes de ainda raiar pela paranóia coletiva, é
uma constante da história portuguesa; e que, por outro, essas
mesmas boas relações tornavam o Reino vulnerável
a um ataque dos inimigos da Espanha.
Frei Vicente do Salvador desenvolveu, aliás, os motivos pelos
quais o Brasil oferecia acolhida mais segura do que os Açores
ou a Índia. Devido a seu reduzido território, as ilhas
podiam ser facilmente conquistadas, como, aliás, se vira
durante a tentativa independentista do prior do Crato, que, a despeito
do apoio naval francês e inglês, não pudera resistir
às armas de Felipe 2º. Quanto à Índia,
tinha os ônus da navegação demorada e perigosa.
O Brasil era assim quem possuía o melhor dos dois mundos.
Sua navegação era fácil, segura e rápida,
de modo que "com muita facilidade podem (os portugueses) cá
vir e tornar quando quiserem ou ficar-se de morada". Suas dimensões
permitiriam abrigar toda a população do Reino, com
o que o tema do Brasil refúgio entroncava-se com outro tópico
caro também aos cronistas do primeiro século, o da
construção de um "grande império"
na América. O que frei Vicente não podia prever é
que, decorrido pouco mais de um decênio da redação
da sua obra, a restauração portuguesa, isolando internacionalmente
Portugal, recolocaria na ordem do dia a velha idéia do reinado
de d. João 3º. Pois a verdade é que o projeto
de transmigração da família real para o Brasil,
finalmente realizado no século 19, tem uma longa pré-história.
Dele, se cogitará concretamente no reinado de d. João
4º e depois na regência da sua viúva, d. Luísa
de Gusmão. Quando da sua segunda missão a Paris (1646-1649),
o marquês de Niza foi instruído a negociar o casamento
do herdeiro do trono, o príncipe d. Teodósio, com
a prima de Luís 14º, a Grande Mademoiselle. Mas a reação
francesa foi negativa, mesmo quando d. João 4º propôs
abdicar em favor do filho, em cuja menoridade a regência seria
exercida pelo almejado sogro, o duque de Orléans, ao passo
que o monarca ficaria com o domínio dos Açores e do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, a serem constituídos
em reino autônomo.
Do segundo projeto de retirada da família real para o Brasil
no decurso da guerra da Restauração, sabe-se por uma
carta do padre Antônio Vieira que a nomeação
de Francisco de Brito Freyre para o governo de Pernambuco (1661-1663)
resultara da preocupação da Rainha Regente de "prevenir
a seus filhos (inclusive d. Afonso 6º, na menoridade) uma retirada
segura, no caso em que algum sucesso adverso (isto é, a reconquista
de Portugal pela Espanha), que então muito se temia, necessitasse
deste último remédio". Vieira, que então
se encontrava missionando no Maranhão, recebeu a ordem de
seguir para Pernambuco, o que só não fez devido à
revolta dos colonos paraenses, que o retiveram em Belém.
Ainda segundo o jesuíta, d. João 4º recomendara
o projeto em papel encontrado, após seu falecimento, "em
uma gaveta secreta, rubricado de sua real mão com três
cruzes". A idéia só foi então descartada
graças à assinatura do tratado de aliança luso-britânico
de 1661.
Escusado assinalar que esse papel messiânico atribuído
ao Brasil era visto igualmente em termos de promoção
econômica e social da população do Reino. O
tópico já se encontra em Gândavo, cujo tratado
se propunha a propagandear "a fertilidade e abundância"
da nova terra junto às "muitas pessoas que nestes Reinos
vivem com pobreza e não duvidem escolhê-la para seu
remédio", pois graças a sua fartura ela era especialmente
acolhedora, tanto assim que os colonos se mostravam mais largos
que os habitantes do Reino no comer e no vestir, além de
mais generosos nas doações pias. De Pernambuco, frisava
Gabriel Soares de Sousa, haviam voltado ricos a Portugal muitos
que ali haviam aportado sem eira nem beira nem ramo de figueira.
É conhecida a história narrada por frei Vicente a
respeito de certo homem de Leiria, punido pelo seu bispo com a sentença
irônica de que "vá degredado por três anos
para o Brasil, donde tornará rico e honrado". O indivíduo
em questão foi mandado para o Rio Grande do Norte, onde,
a despeito de se achar na "pior (terra) do Brasil", fez
fortuna, tornando-se e sua mulher compadres do capitão-mor,
com ele viajando de regresso ao Reino, e, signo da promoção
social, "comendo todos a uma mesa, passeando ele ombro com
ombro com o capitão, assentando-se a mulher no mesmo estrado
que a fidalga, como eu as vi em Pernambuco, onde foram tomar navio
para se embarcarem". O "brasileiro" das novelas de
Camilo Castello Branco é apenas a derradeira encarnação
do mito da terra onde cresce a árvore das patacas.
Aliás, ninguém mais autorizado para glosar o tópico
do que Gaspar Dias Ferreira, lisboeta que chegara pobre a Pernambuco
e aí se tornara homem rico e honrado, senhor de dois engenhos,
conselheiro do conde de Nassau e protegido do vice-rei da Bahia,
conde de Montalvão. No seu parecer sobre a compra do Nordeste
aos holandeses (1645), Gaspar chamava o Brasil de "jardim do
Reino e albergaria dos seus súditos", pois "o português
a quem acontece decair de fortuna, é para lá que se
dirige". E aduzia: "Outrora deliberou-se em Portugal,
como consta de sua história, elevar o Brasil a Reino, indo
para lá o Rei, tão grande é a capacidade daquele
país. Portugal não tem outra região mais fértil,
mais próxima nem mais frequentada, nem também os seus
vassalos melhor e mais seguro refúgio do que o Brasil".
Decorridos poucos anos, será esta a solução
que d. João 4º, como vimos, recomendará à
sua mulher, para a eventualidade de invasão espanhola; e
século e meio depois adotará d. João 6º,
acuado pelo exército napoleônico.
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