Com a livre concorrência, a insegurança da vida sentimental se estendeu à vida profissional

(25/7/1999)

Descaminhos do caráter

JURANDIR FREIRE COSTA

Dois livros, recém-editados, discutem a idéia de caráter moral. O primeiro, "A Corrosão do Caráter" (Editora Record), de Richard Sennett, de forma explícita; o segundo, "O Que é a Filosofia Antiga" (Editora Loyola), de Pierre Hadot, de modo tangencial, mas com igual sensibilidade crítica. A relevância dos livros para o debate ético entre nós é enorme.

Usamos a palavra caráter, na língua corrente, para falar da maneira como a pessoa sente, pensa e age em face dos ideais morais estabelecidos. "Ter caráter", como assinala o dicionário "Aurélio", significa ser alguém "firme, coerente nas atitudes e com domínio de si". Ora, Sennett e Hadot mostram que o caráter moral não é uma manifestação irrefletida de nossos anjos ou demônios interiores. "Ter caráter" é um aprendizado, uma disciplina do espírito que depende do esforço individual, mas também dos meios culturais à disposição dos indivíduos.

Na Antiguidade clássica e nos primórdios do cristianismo, diz Hadot, a busca da felicidade implicava sobretudo a luta contra as paixões da alma. O caráter era forjado na ascese pessoal, cujo objetivo era o controle dos prazeres ilusórios, que não eram apenas os prazeres do sexo, da comida ou da bebida, como costumamos pensar, mas, principalmente, os prazeres do poder, do dinheiro, da ostentação, da ira, da vingança ou da vaidade. Estóicos, epicuristas, céticos, cristãos etc. viam na razão e na vontade os meios de anular a cegueira moral das paixões e alcançar a moderação necessária à realização da justiça. A força do caráter era dada pela capacidade de bem governar a si ou aos outros.

Na modernidade ocidental, como fez ver Sennett, ocorreu uma radical alteração do "ethos" antigo: o cuidado com o caráter deu lugar à preocupação com a "personalidade". O outro deixou de ser o fiador da fidelidade do sujeito ao bem comum para se tornar o cúmplice ansioso ou "voyeurista" de suas idiossincrasias psicológicas. A privacidade burguesa criou a "tirania da intimidade" e nos levou a crer que a felicidade consiste, quase exclusivamente, em satisfazer as aspirações da vida afetiva. O bem-viver não era mais descrito como realização das virtudes públicas, mas como satisfação sentimental.

Em "A Corrosão do Caráter", Sennett dá um passo a mais na análise das metamorfoses da subjetividade. A cultura da intimidade, ao deslocar o centro da identidade pessoal do público para o privado, gerou um fator de instabilidade permanente na consciência de si. Os afetos, em especial os afetos sexuais, se mostraram incapazes de fornecer critérios duradouros para o julgamento ético do que somos ou queremos ser, dada a própria maneira como se constituem. Ou seja, uma das formas que temos de saber "o que é uma emoção privada" é justamente poder reconhecer o fenômeno mental sentido como algo que independe do escrutínio público para ser julgado bom ou mau. A vida emocional íntima, ao contrário da vida pública, é aquela em que podemos exercer, livremente, o direito à experimentação em matéria de estilização de preferências ou inclinações. Essa é a marca original e irrepetível da "personalidade" privada.

A liberdade íntima, entretanto, tem um ônus. Decidir, sozinhos, se o que vivemos emocionalmente é bom ou mau pode ser uma tarefa hercúlea. O justo caminho pode se revelar, rapidamente, um descaminho, e a certeza de hoje pode se mostrar, amanhã, auto-engano, obrigando-nos a rever verdades recentes sobre nós mesmos. O efeito cultural da "tirania da intimidade" não foi, portanto, a autonomia em relação ao "outro público", mas a dependência transferida para os técnicos em normalidade psicológica.

No entanto, a erosão da confiança em si, provocada pela fé na "sabedoria dos sentimentos", foi contrabalançada pela permanência de outras instâncias formadoras de identidade, entre as quais o trabalho. O valor do trabalho e o apreço pela competência profissional continuaram sendo estímulos para que o sujeito continuasse a se ver como alguém potente para agir com retidão e eficiência. Podíamos ter perdido a atração pela ação política; podíamos estar confusos quanto ao valor moral de muitas experiências emotivas, mas dispúnhamos de critérios razoavelmente claros e partilhados para avaliar a criatividade e a produtividade de cada um, no processo de fabricação de artefatos úteis ao mundo.

Atualmente, mesmo esse frágil gancho com o que está "fora de nós" veio abaixo. Com as novas regras da livre concorrência, a insegurança da vida sentimental se estendeu à vida profissional.

Qualquer parceria se tornou precária. A presença do outro não mais suscita apelo à colaboração, mas sim desejo de instrumentalização. Tornamo-nos uma multidão anônima, sem rosto, raízes ou futuro comum. E, se tudo é provisório, se tudo foi despojado da dignidade que nos fazia querer agir corretamente, quem ou o que pode apreciar o "caráter moral" de quem quer que seja?

Na cultura da "flexibilidade", como reza o jargão neoliberal, ou fingimos acreditar em valores que não mais existem ou acreditamos, verdadeiramente, em miragens -e a alienação é ainda maior. Isolados do público, pela paixão dos interesses privados, e dos mais próximos afetivamente, pela degradação do trabalho e pela volubilidade sentimental, erramos em direção ao nada ou a qualquer coisa. Tanto faz o bem e o mal, o justo e o injusto, quando o que temos como guia é o bem-estar do corpo e das sensações.

Resta acreditar que "consumir objetos de desejo" é o mesmo que "satisfazer desejos". Enquanto acreditamos nisso, o show continua: no desfile das drogas, cartões de crédito, pornografia na Internet etc. No momento em que deixamos de acreditar, a "alegria" muda de endereço: passa de nossos corpos para as mãos de quem comanda o espetáculo. Vide a epidemia de violência imotivada e distúrbios físico-mentais que fazem a "festa" dos patrões da indústria de armamentos e de medicamentos.

Hadot e Sennett, é óbvio, não nos convidam a ser viúvas de Atenas, Roma ou Londres e Paris de fim de século. Ambos são mais sábios ou sagazes, como se preferir. Dizem, apenas, que o sentido da vida e da morte não se contabiliza. Podemos mudar o vocabulário que deu sentido à palavra "caráter", e por que não?

Podemos criar formas inéditas de avaliar o bem e o mal que nos convêm, e por que não? Só duvido que possamos rebaixar nossa imaginação criativa a ponto de reduzi-la à bisonha e miserável rotina de acumular dinheiro, compulsiva e indefinidamente, sem jamais perguntar por quê e para quê?

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