|
A
violência se tornou um modo banal de levar ao extremo o jargão
"tudo é mercadoria"
(21/3/1999)
Estratégia
de avestruz
JURANDIR FREIRE COSTA
Na avenida, o Carnaval acabou; na vida, a dança macabra continua:
crianças assassinando crianças; calouro de medicina
morto por afogamento em um trote; mendigos incendiados e mortos
a tiros; garçom de botequim assassinado por um cliente que
devia R$ 3,50 de um lanche; passageiros de automóveis assassinados
dentro de túneis ou em estradas bloqueadas por bandidos;
policiais suspeitos de matar três adolescentes; ambulantes
mortos por terem denunciado a extorsão de policiais e parlamentares;
família de policial chacinada por traficantes etc. Adeus,
terra das palmeiras onde cantam sabiás! O que aconteceu conosco?
Como ocorreu essa medonha mutação?
É fácil culpar a impunidade por esse estado de coisas.
Não teríamos cadeias, mesmo que quiséssemos,
para tantos crimes. A coisa é mais séria. Basta ver
o que acontece quando governantes decidem enfrentar os criminosos,
como no caso do Rio. Justamente porque o governador Anthony Garotinho
-pelo menos, até agora- vem mostrando firmeza no combate
ao banditismo, nossa indigência social aparece sem disfarces.
Tudo parecia simples quando nada era feito. As boas consciências
podiam, então, se queixar de omissão das autoridades.
Pois bem, a autoridade chegou e o resultado é "Chicago
anos 30" em todos os bairros da zona sul. Mães debruçadas
sobre bebês, para defendê-los de balas; vitrines espatifadas;
crianças apavoradas; pessoas mais velhas feridas nas correrias,
em suma, pânico nas ruas! Eis o saldo da tentativa de eliminar,
pela força, o resíduo social produzido por "meios
legais e pacíficos". Conclusão: ou nos aliamos
ao crime ou, em breve, estaremos treinando "como deitar no
chão em meio minuto", antes, durante ou depois do expediente.
A menos, é óbvio, que abandonemos a estratégia
de avestruz para
tentar reparar, enquanto é tempo, nossos aleijões
sociais.
Estamos vivendo um pesadelo e continuamos a falar em câmbio,
bolsa e juros como se fôssemos turistas em um mercado de escravos
do século 19. Precisaríamos de dezenas de Castro Alves,
Joaquim Nabuco ou Raul Pompéia para nos convencer do que
é evidente: se essa crise foi econômica, há
muito deixou de ser só econômica ou principalmente
econômica. O que está em jogo é o desmoronamento
de um estilo de vida que sucumbiu à pressão imoral
da cultura da ganância.
Como mostrou Bruno Latour, recentemente, na Folha, a ficção
ideológica da "sociedade como cópia do mercado"
vem se revelando tão autoritária e insensata quanto
as ficções políticas do nazismo e dos comunismos.
A demência de um mundo em que as 225 pessoas mais ricas detêm,
segundo relatório da ONU, a mesma renda anual dos 2,5 bilhões
de pessoas mais pobres só não é visível
para os cínicos ou os que perderam o sentido do que é
viver em comunidade humana. Nem na França do Antigo Regime,
onde 4.000 aristocratas parasitavam a nação, existiu
tal concentração de privilégio e de poder.
O capitalismo, historicamente, se justificou enquanto soube conviver
com os ideais de liberdade da república e distribuir, de
modo mais equitativo, as riquezas materiais. Essa era a superioridade
moral das democracias capitalistas ocidentais diante dos regimes
comunistas ou ditatoriais dos países periféricos.
Em 20 ou 30 anos, tudo isso foi por água abaixo. A lógica
delirante do lucro perdeu o freio e a vergonha histórica.
No Brasil, em particular, falar em direito à saúde,
educação, moradia, emprego e amparo na doença
ou invalidez passou a ser ridicularizado como arcaísmo de
mentes estúpidas e atrasadas. Cidadãos aposentados
se tornaram "velhos improdutivos"; crianças de
ruas se tornaram pivetes; trabalhadores rurais sem terra se tornaram
"invasores" e trabalhadores urbanos sem emprego, "grevistas
arruaceiros" que não entendem as "dificuldades
terríveis" de banqueiros e especuladores globais. Em
suma, às favas com a lengalenga de solidariedade, justiça
e respeito ao próximo: quem tem, tudo bem, quem não
tem passe bem!
É essa a cozinha em que se fabrica a violência. Para
que virtude cívica, se a recompensa são as filas nos
postos do INSS, dos hospitais-abatedouros ou de escolas sem vaga,
convertidas, muitas vezes, em covil de traficantes? Para que virtudes
privadas, se quem goza de admiração pública
são os frequentadores do "bordel de elites taradas"
em que se transformou a cultura de massas no Brasil, como bem disse
Gilberto Vasconcellos?
Quais são nossos heróis culturais? O artista de talento,
o cientista de valor, o indivíduo trabalhador? Ou o mais
recente apresentador de televisão, que ganha fortunas exibindo
deformidades físicas ou "divertidas perversõezinhas",
feitas de encomenda para excitar o moralismo tacanho dos que renunciaram
a pensar com a as próprias cabeças? Quem vale mais,
neste país: o indivíduo honesto ou o corrupto incensado
nas festas perdulárias e nas revistas de celebridades? Quem
é, de fato, socialmente premiado: o empresário, o
trabalhador ou o especulador e o "esperto" traficante
de influência e de informações privilegiadas
no mercado?
A violência de hoje não se baseia, apenas, no ódio
ao diferente ou na intolerância para com os desviantes. Ela
se tornou uma forma corriqueira de levar ao extremo as consequências
do jargão leviano "tudo é mercadoria". Em
poucas palavras, se o dinheiro é a medida do homem, ou dinheiro
no bolso ou cadáver no fosso! Depois de anos e anos de desmoralização
do valor da pessoa humana, gente, "aranhas ou visigodos",
tudo é nivelado por baixo. Elite e ralé não
mais se distinguem, e o efeito está aí: mata-se por
R$ 3,00; morre-se por coisa alguma. Vidas sem rumo, mortos sem causa.
Esse "terror branco", da cor do dinheiro, é pior,
em certa medida, do que os regimes de terror conhecidos, pois seus
mentores querem nos convencer de que a vítima é culpada
por não compreender as "nobres" razões que
a levam à forca! Por que a ideologia do lucro é mais
limpa e imaculada do que a ideologia dos fanáticos defensores
da "raça" ou do "povo"? Por que se calar
diante dos assassinatos em massa que vêm acontecendo no Brasil?
Assim como aprendemos que vida se respeita, também desaprendemos
a respeitar vidas que não têm cadastros especiais em
bancos. É só uma questão de tempo e hábito.
Philip Dick, na ficção futurística "Loteria
Solar" descreve um mundo sombrio onde o jogo substitui a moral,
a ação humana se curva às estatísticas
e o que resta é "apostar em uma boa chance".
Felizmente, ainda não estamos lá. Mas, ou viramos
o leme do barco ou tudo será muito mais difícil de
resolver. Retórica vazia? Vamos aos fatos. Em três
dias de Carnaval foram consumidas 840 garrafas de champanhe francês
e 900 garrafas de uísque em um camarote da Marquês
de Sapucaí. No mesmo período, 450 pessoas morreram
no país, na mesma "animada" festa. Façam
as contas e decidam qual a moral da história.
|
|