Na Semana Sangrenta da Comuna de Paris, o Exército francês varreu a cidade, fuzilando prisioneiros, mulheres e crianças

(13/02/2000)

Pisando os astros


JOSÉ MURILO DE CARVALHO

O cemitério de Père Lachaise, situado na zona leste de Paris, é dos lugares mais visitados da cidade. Por ano, mais de um milhão de pessoas circula por suas avenidas, ruas, aléias, caminhos, contornando túmulos, mausoléus, monumentos. Ele oferece aos visitantes uma vantagem única em relação ao resto da cidade: ninguém precisa preocupar-se, ao admirar um marco histórico, em estar ao mesmo tempo pisando num cocô de cachorro. O velho terreno pertencente aos jesuítas, um dos quais, o padre Lachaise, que foi confessor de Luís 14, foi comprado pela prefeitura de Paris e transformado em cemitério em 1804. Nos quase 200 anos de vida (talvez não seja impróprio usar este substantivo), reuniu entre seus muros uma coleção extraordinária de representantes da vida cultural e política francesa, muitos deles astros da cultura ocidental e universal. Os milhares de turistas que caminham por esse chão de estrelas pisam os astros, distraídos, como a cabrocha de Orestes Barbosa. Para efeito publicitário, foram para lá transferidos os restos de Heloísa e Abelardo, mortos no século 12, e de La Fontaine e Molière, no século 17. Mas os que para lá foram após a criação do cemitério garantem por si sós a constelação de estrelas. Cito alguns como amostra. No mundo da ciência, Bichat, Champolion, Gay-Lussac, Pinel, Lesseps; nas artes plásticas, David, o pintor da Revolução de 1789 e de Napoleão, Delacroix, Ingres, Gustave Doré, Daumier, Géricault, Modigliani; na música, teatro e dança, Bizet, Chopin, Sarah Bernhardt, Isadora Duncan; na literatura e história, Proust, Balzac, Sully-Prudhomme, Musset, Michelet, Braudel.

Os mortos da Comuna
De importância direta para o Brasil, lá estão Benjamin Constant, autor da teoria do poder moderador usada na constituição de 1824, Victor Cousin, filósofo eclético de grande influência entre nós nos meados do século 19, o filósofo Auguste Comte, inspirador de nossos positivistas ortodoxos que até hoje exercem seu culto na capela da rua Benjamin Constant, na Glória, e Allan Kardec, criador do espiritismo, doutrina ainda seguida por muitos. Aliás, os dois túmulos mais visitados hoje do Père Lachaise são os de Jim Morrison, pelos jovens, e o de Allan Kardec, pelos mais velhos. Em torno deste último há verdadeiro culto, com abundância de flores e velas. Visitantes acariciam longamente o busto do morto. Mas nem todos os habitantes do Père Lachaise ali estão por vontade própria ou de seus parentes. Subindo à parte mais alta do cemitério, perto da entrada pela rua da Réunion, ao lado de monumentos às vítimas da Guerra Civil Espanhola, da Resistência e dos campos de concentração nazistas, há um simples canteiro de flores junto ao muro. Trata-se do Muro dos Federados, isto é, dos mortos da Comuna de Paris de 1871. A simplicidade do canteiro diante dos monumentos e mausoléus nem de longe faz justiça ao imenso drama representado pela Guerra Civil entre os federados, que controlavam Paris desde 18 de março de 1871, e as tropas do governo estabelecido em Versalhes. O descompasso é apenas mitigado por um pequeno muro construído fora do cemitério, do lado da avenida Gambetta, com pedras que ainda guardam as marcas das balas de 1871. A semana de 22 a 28 de maio de 1871 ficou conhecida como a Semana Sangrenta da guerra. Nesses sete dias as tropas de Versalhes varreram a cidade de oeste a leste, queimando, destruindo, matando, fuzilando prisioneiros e reféns.

Lutou-se de rua a rua, de barricada a barricada, de casa a casa, sob o olhar divertido das tropas prussianas que sitiavam a cidade pelo lado leste. Um a um, foram caindo os redutos federados, Montmartre, Hôtel-de-Ville, Panthéon, praça Vendôme, Bastilha, defendidos por soldados da Guarda Nacional e civis armados, homens, mulheres e crianças.

Paris em chamas
A cidade ficou em chamas, as Tulherias, o Hôtel de Ville, os Palácios da Justiça, da Legião de Honra e d'Orsay. No sábado, dia 27, 200 federados se concentraram num de seus últimos redutos, o Père Lachaise. Duas brigadas invadiram o cemitério ao entardecer.

Lutou-se ferozmente debaixo de chuva, de túmulo a túmulo, a revólver, baioneta e faca. Gravuras da época mostram o combate em torno dos sepulcros de Balzac, Sarazin e Nordier. Já de noite, 157 federados, empurrados contra o muro, foram fuzilados. O dia seguinte, último da Comuna, domingo de Pentecostes, foi talvez o mais vergonhoso do Exército francês. Houve fuzilamentos em massa de presos por toda a cidade. Mulheres e crianças não escaparam. Uma cara, um gesto, considerados suspeitos, a mão suja, uma faixa vermelha à cintura, qualquer coisa era motivo de execução. Na segunda-feira, o Père Lachaise recebeu na vala comum os cadáveres de 1.800 federados fuzilados na véspera na prisão de La Roquette. Foi a cota do Père Lachaise dos cerca de 35 mil federados mortos na guerra civil. Do lado de Versalhes, morreram cerca de mil soldados. Há outra lembrança da Comuna no cemitério: o grande mausoléu em homenagem a Louis-Adolphe Thiers, homenzinho de pouco mais de 1,50 m, historiador da Revolução de 1789 e chefe do governo de Versalhes. Thiers assinou a rendição da França aos alemães, planejou e comandou, ao lado do marechal Mac-Mahon, derrotado em Sedan, a luta contra os federados, fechando os olhos aos massacres da Semana Sangrenta. Eleito presidente da República em agosto de 1871, foi declarado pela Assembléia Nacional benemérito da nação.

Sinal dos tempos
Saindo do Père Lachaise para o mundo dos vivos, o visitante nota que as ruas de Paris ainda exibem pálidas lembranças da cidade rebelde de 1871. No mês de janeiro, duas grandes passeatas percorreram as avenidas: uma a favor dos direitos das mulheres, outra em defesa dos hospitais públicos. A primeira combatia a "ordem moral", expressão cunhada por Thiers, adotada por Mac-Mahon e defendida ainda hoje pela direita francesa. Em suas faixas, a "fraternité" revolucionária, de viés masculino, foi substituída pela "solidarité" democrática. Sinal dos tempos, após os últimos manifestantes, ao lado dos carros da polícia, seguiam caminhões da limpeza pública varrendo a rua e recolhendo panfletos, faixas e bandeiras deixadas pelo caminho. Aproveitando a viagem, recolhiam também os cocôs de cachorro.

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