A expansão da tecnologia e o fetiche do consumo estão criando uma forma ainda desconhecida de cidadania nos Estados Unidos

(28/3/1999)

Boliche solitário

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Por volta de 1720 não havia um bom livreiro em Filadélfia.

Incomodado com o fato, Benjamin Franklin propôs aos amigos juntar os livros e formar uma biblioteca de que todos pudessem tirar proveito. Logo a seguir, fundou o primeiro clube do livro, instituição que se propagou pelo país, assim como criou também um serviço voluntário de bombeiros.

Um século mais tarde, Tocqueville registrou a capacidade de se organizar para atingir objetivos coletivos como sendo a principal característica dos habitantes do país. Segundo o arguto observador francês, havia na América do Norte milhares de organizações de todo tipo, religiosas, culturais, sérias, fúteis, amplas, restritas, grandes, pequenas. Outros observadores de fora confirmaram a impressão. A capacidade de se organizar, de exercer a arte da associação, de resolver problemas coletivos sem depender da ação do Estado, enfim, de sustentar uma forte e dinâmica sociedade civil, continuou sendo a marca distintiva da sociedade norte-americana, motivo de admiração dos visitantes e de orgulho dos nativos.

Não foi, por isso, sem causar grande polêmica que um artigo publicado em 1995 no "Journal of Democracy", e assinado por Robert Putnam, professor da Universidade Harvard, levantou a hipótese de que essa venerável tradição estaria ameaçada por mudanças ocorridas nos últimos 30 anos. Putnam mostrou com abundância de dados que tem havido nítido declínio (cerca de 25%) no índice de participação dos norte-americanos em organizações políticas, religiosas, sociais, profissionais, culturais e esportivas. A participação eleitoral caiu substancialmente, sobretudo a partir dos escândalos iniciados no governo de Nixon.

Mas também caiu o envolvimento em atividades locais, nas associações de pais e mestres, nos clubes, nos sindicatos, na Cruz Vermelha, nas igrejas. Curiosamente, só aumentou a prática do boliche, mas mesmo assim fora dos clubes. Os norte-americanos jogam mais boliche (80 milhões jogaram pelo menos uma vez em 1993), mas jogam cada vez mais sozinhos. Daí o título do polêmico artigo, "Bowling Alone", ou "Jogando Boliche Sozinho".

Escrito há quatro anos, o artigo não incorporou devidamente outras mudanças que reforçam seu argumento. Hoje nos Estados Unidos quase não se consegue mais falar com pessoas ao telefone, fala-se com mensagens gravadas. Ao chegar aqui em dezembro passado, vindo do aeroporto, liguei para o Centro Internacional da universidade para obter informação sobre o apartamento em que iria morar. Ouvi cinco mensagens gravadas: se deseja isto, disque número tal, se aquilo, número tal etc. A quinta dizia: "Se deseja falar com algum funcionário, disque 5". Disquei e ouvi: "Lamentamos, mas no momento não há ninguém disponível para atendê-lo".

Andei uma hora e meia para chegar à universidade, pois táxi só quando chamado, e eu não tinha o número. Se telefonasse, provavelmente iria ouvir de novo: se deseja isto etc. O artigo também não incorporava devidamente o impacto da Internet. Em substituição ao telefone e à conversa pessoal, veio o e-mail.

Professores falam entre si e com funcionários por e-mail. Recebo e-mails de pessoas que trabalham na sala ao lado. Alunos pedem por e-mail esclarecimentos e bibliografia aos professores. Informação sobre qualquer assunto? Visite o site na Internet. Aumenta a comunicação, ao mesmo tempo em que diminui o contato pessoal.

A pergunta a fazer, então, seria se o contato pessoal pode ser dispensado para a manutenção da saúde da sociedade civil. Em outras palavras, se pode haver civismo cibernético.

Se aos dados acima juntarmos o fato de que a confiança nos governos, nas instituições e nas próprias pessoas, outro clássico componente do sistema de crenças norte-americano, está também em franca deterioração (e as estripulias amorosas do presidente atual não contribuíram pouco para isto), pode-se perguntar seriamente se não estamos de fato diante de rápida e surpreendente transformação de uma cultura mais que bissecular, que parecia imune aos mais variados desafios. A solidez da democracia norte-americana estaria em questão? Ou estariam apenas sendo criadas novas bases para a legitimidade democrática, cujas características ainda nos escapam?

É verdade que há indicações que apontam na direção tradicional. O conceito de cidadania cultural, por exemplo, implica o deslocamento do Estado-nação de seu tradicional papel de fundador da identidade coletiva e uma fragmentação de identidades que poderiam ser vistos como ressurgimento do velho "self-government". No entanto, há aí uma contradição que não parece estar sendo levada em conta pelos proponentes da cidadania cultural.

Em boa parte, a luta das minorias e, sobretudo, seu êxito foram devidos à ação afirmativa, que de fato contribuiu para a redução das desigualdades sociais. Mas a ação afirmativa representou até certo ponto uma guinada na tradição, na medida em que apelou para a política pública, para o Estado, e foi assim o reconhecimento de que não bastava a capacidade organizativa, não bastava a iniciativa individual ou de grupos. Ao atacar o Estado, a cidadania cultural está de certo modo atirando no próprio pé. Além disso, ao fragmentar as identidades e rejeitar a identidade maior referida à nação, ela pode contribuir também para enfraquecer objetivos sociais que ultrapassem os estreitos limites dos grupos protegidos.

A bonança econômica tem mantido os norte-americanos satisfeitos com o país e com a vida. O que une todos eles hoje talvez não sejam mais os tradicionais componentes do etos nacional, entre os quais se destaca a capacidade de se organizar. Talvez seja antes o fetiche do consumo. O cidadão norte-americano é antes de tudo o consumidor, e é pelo consumo que ele se relaciona com os semelhantes e avalia o governo. Se esse fetiche pode ser base sólida para a democracia do século 21 -e aqui talvez não apenas a norte-americana, mas a de todo o mundo desenvolvido-, é o que parece muito duvidoso. Alguns milhões a mais vão jogar seu boliche solitário, talvez todos joguem. Estaríamos, então, em plena democracia do boliche, uma democracia que, a meu ver, teria a mesma probabilidade de se manter de pé que têm os pinos do jogo.

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