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Nas
Festas do Divino o impossível se torna realidade: as crianças
governam o mundo, e as prisões e o trabalho são abolidos
(5/3/2000)
O
reino do imprevisível
HERMANO VIANNA
A
"fusão" entre America Online e Time Warner e a
compra da EMI por esta última pode ser muito bem pensada
como um sinal evidente do fim do mundo. Contudo, mesmo imersos no
delírio escatológico cibercapitalista, é imperioso
concordar com o fato de que o mundo ainda não acabou. Aliás,
com a chegada do ano 2000, pouca coisa realmente, ou virtualmente,
mudou. Eu fui ver a queima de fogos em Copacabana na passagem do
ano. Talvez tenha durado alguns poucos, pouquíssimos, minutos
a mais do que nas viradas de ano passadas. Talvez houvesse alguns
poucos, pouquíssimos, milhares de festeiros a mais na praia.
Até que a multidão se comportou muito educadamente,
fingindo que estava vivendo um momento extraordinário na
história da humanidade. Mas dava para perceber, sob a chuva
fina e todas as manifestações de felicidade, uma corrente
de frustração reprimida, ou rapidamente sublimada:
afinal, o grande espetáculo (o Apocalipse) estava mais uma
vez adiado. Deveríamos ter aderido à proposta feita
em 1988 por Jean Baudrillard no jornal francês "Libération":
"Lançar uma petição coletiva [..."
para que sejam suprimidos por antecipação os anos
de 1990 e que nós passemos diretamente de 1989 ao ano 2000.
Pois, este final de século já estando aqui, com todo
seu "pathos" necrocultural, suas lamentações,
comemorações, museificações que não
acabam nunca, será que vamos nos entediar por mais dez anos
nesta galera?". Seguir esse conselho "irado" teria
nos poupado muitos outros aborrecimentos, inclusive o do bug do
milênio. Cortar a década final do último século
era uma sugestão de inspiração ironicamente
milenarista.
Praia
vazia
Em outro artigo, este de 1985, intitulado "O Ano 2000 Não
Passará", Baudrillard produziu a seguinte declaração
niilista: "O final de século está diante de nós
como uma praia vazia". Na minha experiência, o final
de século está agora para trás, como uma Copacabana
cheia. Mas não há muita diferença entre as
duas imagens. Algo de fundamental falta a ambas: "Alguma coisa
como um desafio ao tempo", um curto-circuito da história
que nos levasse furiosamente ao seu fim (o fim da história)
ou à chegada imediata do Reino dos Céus anunciado
como próximo por Jesus Cristo. A impaciência com o
lento, sofrido e entediante desenrolar da história motivou
o aparecimento de muitas heresias: "Os primeiros tempos do
cristianismo serão marcados por uma resistência veemente,
mesmo entre os crentes, em ver a chegada do Reino de Deus transportada
para um futuro indefinido". Essa resistência, mais ou
menos veemente, continuou provocando acontecimentos históricos
decisivos, não por findar com a história, mas muitas
vezes por complexificá-la, arrastando paradoxalmente todo
o planeta para suas duras leis, tendo inclusive servido de base
"ideológica" (como apontou o historiador Jean Delumeau
no seu livro "Mil Anos de Felicidade", Companhia das Letras)
para as grandes navegações portuguesas e o eventual
"achamento" do Brasil. Vejamos, como num videoclipe acelerado,
o que nossos 500 anos de história têm a ver com o desejo
de fim da história.
Uma
nova era
Seitas heréticas e ordens monásticas diversas foram
criadas a partir de interpretações não-ortodoxas
de versículos da Bíblia, como o Apocalipse (20, 1-7),
que serve de inspiração principal para todas as vertentes
milenaristas. Um anjo desce dos céus, algema o Dragão
e a Serpente e os acorrenta por um milênio (daí o termo
milenarismo). Não é ainda a chegada do fim da história,
mas o início bem-aventurado do fim: "Aqueles que não
tinham adorado a fera ou sua imagem" viveram "uma vida
nova e reinaram com Cristo por mil anos". Outro texto profético
que inspirou muitas heresias foi a interpretação,
feita por Daniel (Daniel, 2, 1-49), do sonho do rei Nabucodonosor
com a grande estátua de "pés de barro" (na
verdade, mistura de barro e ferro) representando os cinco reinos
do mundo, sendo o quinto suscitado por Deus, "um reino que
jamais será destruído e cuja soberania jamais passará
a outro povo". Inúmeros cristãos, das mais variadas
tendências, misturaram essas profecias, e fizeram seus próprios
cálculos para acelerar ou apenas detectar a mais que desejada
chegada do Reino dos Céus. Um exemplo importante para encurtar
o caminho que nos levará ao Brasil: Joaquim de Flora, monge
da Ordem de Cister, que viveu o final do século 12, acreditava
na sucessão de três reinos -o do Pai, o do Filho, o
do Espírito Santo- e anunciava para breve a instauração
desse terceiro reino, purificando a Igreja. Tanto a idéia
de um Quinto Império, retirada das profecias de Daniel, quanto
a da próxima vinda do Espírito Santo, influência
joaquinista, tiveram decisiva e mobilizadora repercussão
na cultura lusitana, gerando outras tantas idéias e costumes
dos quais ainda somos "tributários". Jean Delumeau
afirma que "Portugal foi atravessado do século 15 ao
17, inclusive, por profundas correntes milenaristas, sem o conhecimento
das quais a história desse país é incompreensível".
Caravelas
abençoadas
Não foi um consumo passivo de heresias importadas: Portugal
encontrou uso próprio para essas idéias, colocando-se
no centro dos acontecimentos que iriam instaurar no mundo, descoberto
por caravelas abençoadas pela Cruz da Ordem de Cristo (herdeira
da Ordem dos Templários, por sua vez herdeira, via São
Bernardo, da também austera Ordem de Cister), um reino "universal
e messiânico". Na sua "História do Futuro"
(que pode ser lida via Internet, graças ao trabalho voluntário
de Richard Zenker e ao excelente projeto Textos Literários
em Meio Eletrônico, do Núcleo de Pesquisas em Informática,
Linguística e Literatura, da Universidade Federal de São
Carlos), depois de comentar detalhadamente as profecias de Daniel
e ao falar sobre o Quinto Império vindouro, o padre Antônio
Vieira (difusor e metamorfoseador do joaquinismo, segundo Maria
Leonor Carvalhão Buescu) resume séculos de aventuras
e esperanças: "A melhor parte dos venturosos futuros
que se esperam e a mais gloriosa deles será não somente
própria da Nação portuguesa, senão única
e exclusivamente sua. Portugal será o assunto, Portugal o
centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas
maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas, os Portugueses".
"Encantaria"
local
O padre Vieira escreveu o início dessa "História
do Futuro" no Maranhão, justamente o Estado brasileiro
que, por motivos pouco claros (não estou sugerindo nenhuma
conexão esotérica), mais manteve vivos, em várias
de suas tradições populares, determinados aspectos
do milenarismo. Há inclusive, na ilha dos Lençóis,
uma vertente da "encantaria" local em que fiéis
são possuídos por espíritos de membros da família
real portuguesa.
Há também a crença em um touro, com uma estrela
pintada entre os chifres, que vaga nas noites de suas praias: quem
conseguir enfiar uma espada na estrela vai ver o touro transformado
em dom Sebastião, e a ilha, na Nova Jerusalém. É
no Maranhão que também encontramos, com maior devoção
popular, diversos tipos de homenagens ao Espírito Santo e
a seus "Impérios". Esse culto, segundo vários
autores, teria sido introduzido em Portugal, junto com outras idéias
de Joaquim de Flora, pela rainha Isabel, "a santa". Sua
difusão, também nos Açores, foi duradoura.
Tanto que até o século 19, como está descrito
no interessantíssimo "O Império do Divino",
livro de Martha Abreu (Nova Fronteira, 1999), a Festa do Divino
realizada no campo de Santana, Rio de Janeiro, era a maior e mais
importante festa popular brasileira, na qual, além da celebração
sagrada, havia teatro, valsa, batuque e danças de bonecos
("autômatos negros dançando jongo"!), reunindo
"a plebe, a burguesia, o escravo e a família, o aristocrata
e o homem de letras" (a influência do Divino nas artes
populares brasileiras está mapeada em outro livro precioso:
"Divino", de Eduardo Etzel, ed. Kosmos e Giordano).
A
escravatura do trabalho
Agostinho da Silva, o mais indispensável professor luso-brasileiro
desses últimos 500 anos (e que por isso mereceria todas as
nossas melhores homenagens nas comemorações que estão
por vir), foi também o pensador que tirou as consequências
mais radicais dessa herança milenarista portuguesa. Nos seus
livros e entrevistas, as lições do joaquinismo ganham
uma interpretação desconcertante e libertadora. O
Pai teve o reino da ordem, do previsível, do regular. O Filho
instaurou o reino do perdão, eliminando alguns efeitos prejudiciais
da ordem. O Espírito Santo completará o trabalho do
Filho, instaurando o reino do imprevisível, "solto de
qualquer limitação". Nas Festas do Divino, segundo
Agostinho da Silva, o povo português, em seu "mais autêntico
e espontâneo culto", identifica as limitações
que cerceiam a imprevisibilidade e propõe o impossível
que se torna realidade no dia festivo: as crianças devem
governar o mundo; o que se consome de básico deve ser abundante
e gratuito; as prisões devem ser abolidas. Nosso professor
libertário, com a autoridade singela de quem lutou tanto
contra a ditadura de Salazar quanto contra o regime militar brasileiro,
e de quem também ajudou a fundar a Universidade Federal da
Paraíba, a Universidade Federal de São Carlos, a Universidade
de Brasília e o Centro de Estudos Afro-Orientais da Bahia
(onde influenciou o pensamento de, entre outros novos "professores",
Glauber Rocha), acrescenta: que acabem os hospitais (porque acabaram
as doenças, e a doença dos médicos é
"ter clientes"); que tenham fim a instrução
obrigatória e os diplomas ("mas pondo todas as escolas
ao alcance de todos"); que seja abolida "a escravatura
do trabalho".
Império
das Crianças
Mas, antes de tudo, que se incentive o imprevisível. Está
no Evangelho segundo São Mateus (Mateus, 12, 31-32): "Todo
pecado, toda blasfêmia, será perdoado aos homens; mas
a blasfêmia contra o Espírito não lhes será
perdoada. Todo o que tiver falado contra o Filho do homem, será
perdoado. Se, porém, falar contra o Espírito Santo
não alcançará perdão nem neste mundo
nem no que há de vir". Agostinho da Silva define esse
único pecado inexpiável "como aquele que destruísse
o meu poder de ser imprevisível". Então, território
da radical imprevisibilidade, o Império do Espírito
Santo, e das Crianças, seria "o único digno de
ser o Quinto de Vieira e Pessoa, o único capaz de esquecer
de vez dom Sebastião".
Se não for pedir demais: seria bom poder esquecer também
os conselhos "sinistros" de Jean Baudrillard ou as previsões
tolas (de catástrofes ou paraísos) feitas no final
do milênio passado. Resumindo: ficam aqui meus mais sinceros
votos de que as festas das próximas viradas de milênio
sejam realmente extraordinárias e imprevisíveis. Ou
que tudo possa ser imprevisivelmente Divino e Maravilhoso.
Melhor: quem resume tudo mesmo é o final do samba-enredo
"Brasil, Teu Espírito É Santo" (autoria
de Mauro, Claudinho Strutline, J. Bodão e Márcio do
Swing!), com o qual a Caprichosos de Pilares desfila hoje no Sambódromo,
no Rio: "Capricha na virada, amor, amor. O futuro é
todo seu. Teu Espírito é Santo, é Guerreiro.
Sou mais você, valeu".
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ou o atoleiro virtual de porcarias
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