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A
invasão mercantilista no ciberespaço foi avassaladora
e sufocante, quase aniquilando as fontes de energia criativa
(26/12/1999)
Internet ou
o atoleiro virtual de porcarias
HERMANO
VIANNA
Desde que a Internet se transformou não apenas numa nova
mídia, mas também numa vedete da mídia, quase
todas as revistas do mundo publicaram capas celebrando os encantos
da vida "conectada". Guardei, entre muitas outras, uma
"Time" que anunciava "o estranho novo mundo da Internet".
Era 1994, parece uma eternidade: hoje, o estranho virou o óbvio
e não há mais como escapar das malhas da Grande Rede.
Por isso, ao embarcar recentemente num avião da Varig, estranhei
a capa da revista "Ícaro", que tentava me seduzir,
toda convidativa: "A Internet já pode mudar sua vida".
Já?!!! Pensei comigo mesmo: não, não pode mais.
Há algum tempo, até achei que podia, ou poderia. Mas
agora? Há só uma longínqua probabilidade, a
mesma que me faz acreditar que uma mudança de vida pode acontecer
até numa ida ao shopping center.
Pois é obvio que no final de 1999 a Internet é um
grande shopping-cilada. Todo mundo parece estar ali para ganhar
uma grana fácil em cima de um público considerado
trouxa. Há cinco anos, antes da existência de provedores
comerciais no Brasil, a matéria da "Time" lançava
a seguinte questão: "A maior rede de computadores do
mundo, antes o parque de diversões de cientistas, hackers
e viciados em máquinas, está sendo tomada por advogados,
comerciantes e milhões de novos usuários. Há
lugar para todo mundo?". Hoje sabemos: a invasão da
imbecilidade mercantilista foi avassaladora, sufocante, quase aniquiladora
das fontes de energia criativa que brotavam aqui e ali na rede.
90%
de lixo Faça o teste: procure por "Jean-Luc Godard"
em qualquer uma dessas cada vez mais ineficientes ferramentas de
busca do ciberespaço (ainda prefiro o Altavista, em modo
texto).
Aparecerão páginas em abundância, mais de 5.000,
porém 90% é lixo. Um bando de gente tentando vender
uma fita de vídeo, um livro, uma assinatura de fanzine cinematográfico.
Algumas lojas virtuais tentam camuflar o básico instinto
de lucro com alguma informação. Nada que uma enciclopédia
mediana que custa bem menos do que um computador obsoleto não
resolva com uma superioridade moral triunfante (até porque
nos poupa da espera enfadonha do "download" de publicidade
animada). As poucas páginas que realmente têm "conteúdo"
são, na maioria absoluta das vezes, produtos do trabalho
quase sempre gratuito de gente que ainda acredita que "a informação
quer ser livre", slogan que pavimentou os caminhos da Internet
em seus tempos "heróicos".
É cada vez mais difícil encontrá-las no atoleiro
virtual de porcaria e banalidade que as cercam. Além disso,
os intermediários entre os usuários e as informações
relevantes se multiplicaram numa infinidade de níveis quase
impossíveis de serem ultrapassados -muitos "cookies"
suspeitos depois- sem dar algo (nosso endereço eletrônico,
para início de conversa) em troca.
Godard, numa de suas entrevistas maoístas, falava de um processo
semelhante que atravancou o cinema: "A distribuição
virou um comércio. Os intermediários, os distribuidores
pois, são gente preguiçosa, que não fazem nada,
mas que dizem e se dizem: nós somos indispensáveis,
todo mundo tem que passar por nós". Os intermediários
também tomaram conta da rede e se auto-elogiam como indispensáveis,
como prestadores de serviços sem os quais os "simples
mortais" não poderiam viver (o mais difícil da
Internet não foi criado sem eles?). O pior é que essa
gente preguiçosa e velhaca se acha incrível e é
tratada (na capa da "Wired", da "Business Week"
e de revistas ridículas tipo "Fast Company") como
se fosse realmente incrível, genial até. Quem inventou
a Amazon vira um herói, um gênio (o grau de genialidade
é medido pelo lucro de sua companhia na abertura de capital
ou, para os íntimos, quando ela "go IPO").
No Brasil, então a coisa vira uma piada. Quem copia a Amazon
vira herói. Quem copia a cópia do eBay vira gênio.
Qual foi a idéia original de aplicação para
a Internet surgida no Brasil? Por que ninguém daqui inventou
um eBay, um Yahoo (pedir a invenção de um Netscape,
ou de um novo conceito de Web, seria demais)? No entanto estamos
cheios de gênios on line. E milionários. Com o nosso
dinheiro.
O pior é que nem nos achamos otários. Otário
vira Tim Berners-Lee, o cara que inventou a Web, que não
ficou bilionário e continua trabalhando para que sua criação
continue gratuita e aberta.
Por um tempo, parecia que tudo na Internet seria assim, que sua
própria estrutura descentralizada impediria bloqueios ideológicos.
Confesso minha enorme ingenuidade: cheguei a acreditar, incentivado
pelas leituras da "Whole Earth Review" e dos primeiros
números da "Mondo 2000" (que ainda era melhor quando
se chamava -título supimpa- "Reality Hackers"),
que o ciberespaço poderia ser a versão digital do
sertão de Guimarães Rosa, habitado por gente que "não
escrevia para o dia, mas para o infinito". No seu famoso diálogo
com Günter W. Lorenz, o alquimista do "Grande Sertão"
fez afirmações que, para o cinismo atualmente dominante,
só podem soar ingênuas: "Ao contrário dos
"legítimos" políticos, acredito no homem
e lhe desejo um futuro. Sou escritor e penso em eternidades. O político
pensa apenas em minutos. Eu penso na ressurreição
do homem". Cito outro trecho, para irritar ainda mais os cínicos:
"Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde
ele não adianta muito".
A
toca Quando o dinheiro pesado invadiu a rede, outras noções
de ressurreição, eternidade e infinito chutaram o
sertão para escanteio. Sabemos que os arquitetos de shopping
centers também criam o infinito, mas um infinito falso, degradado,
"pequenificado".
O shopping center é fechado por todos os lados, é
uma toca, uma caverna de Platão. De fora, ninguém
vê o que acontece lá dentro, por trás das muralhas.
Mas de dentro o consumidor tem a ilusão de percorrer caminhos
infinitos. Mas é um infinito-prisão, totalmente controlado,
que apenas quer gerar mais consumo, desenfreadamente, irresponsavelmente.
É esse infinito pequeno que agora atocaia (nunca escrevi
algo tão frankfurtiano!) o grande infinito do sertão
ciberespacial.
No poema "Fábula de um Arquiteto", João
Cabral de Melo Neto descreve dois modos de construção:
o "construir como fechar secretos" e o "construir
portas abertas, em portas". As portas seriam também
de dois tipos: as "portas por-onde" e as "portas-contra".
No infinito de Guimarães Rosa, as portas são todas
"por-onde", "livres". No infinito do shopping
center só há "portas-contra".
Por isso detesto esses portais que viraram moda na Internet comercial:
são todos "portas-contra", não levam a lugar
nenhum, só ao clique de mouse que tem o significado único
de um trabalho de Barbara Kruger (ou seria Jenny Holzer?): compro,
logo existo.
Repare bem: os criadores de "portais" acham que todos
os usuários são burros. É a mesma mentalidade
do "broadcast", dos meios de comunicação
de massa, transposta sem nenhuma modificação para
a mídia teoricamente antimassa que é a rede. Ao trabalhar
na televisão, cansei de ouvir recomendações
de que não devia se falar disso ou daquilo porque o "povo"
não iria compreender e, não compreendendo, iria mudar
de canal. Os "portais" têm a mesma imagem do povo:
tudo é "facilzinho", coloridinho, animadinho, curtinho,
pois o usuário que não quer saber de "complicações"
pode mudar de página a qualquer instante sem comprar nada.
Tudo passa a ser nivelado por baixo, em nome de uma imagem do usuário/telespectador
que existe mais na cabeça de quem produz Internet/televisão
do que no mundo real/virtual.
Que fazer? Tenho plena consciência, com Luc Boltanski e Ève
Chiapello, em seu essencial tijolo "Le Nouvel Esprit du Capitalisme"
(O Novo Espírito do Capitalismo, Gallimard, Paris, 1999),
de que artigos como este (escrito, se você ainda não
notou, como paródia do tom indignado e "polêmico"
que domina os cadernos culturais brasileiros em sua "crítica"
da indústria cultural) reendossam "o hábito,
aristocrático, mas usado em toda parte, do panfletário,
"consciência" solitária diante das massas
cretinizadas" e se enrijecem "na nostalgia reacionária
de um passado idealizado, de comunidades quentes", nem que
seja aquela que se formou fugazmente quando a Internet ainda não
era comercial. Esse tipo de crítica, inevitavelmente, contribui
para tornar possíveis as formas de opressão e de mercantilização
às quais finge se opor.
Ecologia
política Que fazer então? Como diria Bruno Latour:
ecologia política, é claro! É preciso primeiro
acreditar que a batalha não está perdida. Se é
assim, ecologia política, no ciberespaço, significa
introjetar, sem alarde, com a maior paciência do mundo, o
infinito "não-humano" do sertão em cada
buraco da rede-shopping-center. Infinito: quem procura acha; não
vou dar aqui seu endereço eletrônico. Fique aberto
e atento para seus sinais. Para começar: boicote os grandes
provedores (nacionais ou estrangeiros): nada poderia ser pior do
que o monopólio de acesso à rede. Ignore os portais:
encontre seu próprio caminho na rede.
Não tenha pressa (bobagem, pressa). Não tenha preguiça
(teste o Linux; mantenha a proteção contra "cookies"
ligada; leia "nettime" etc. etc.) Não aceite nenhum
tipo de censura... Em resumo: tome conta, com a dignidade de um
Riobaldo, da Internet. Uma Grande Rede sertaneja seria nossa melhor
herança para os milênios que vêm por aí.
Leia mais: O
Atlântico negro
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