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Música
afro-americana é um circuito intercontinental de tradições
(14/11/1999)
O
Atlântico negro
HERMANO VIANNA
Você
pode até pensar que não sabe o que é jungle
ou, respeitavelmente, drum'n'bass. Mas é quase impossível
que ainda não tenha sido exposto ao vírus ciber-rítmico
desse estilo musical, o primeiro a realmente merecer ser qualificado
como britânico. A batida "quebrada" -"breakbeat"-
que produz seu fundamento dançante contaminou todo o pop
mundial, num espaço de tempo recorde, se pensarmos nas dificuldades
que outras músicas eletrônicas, como o hip hop, a house
ou o tecno enfrentaram para serem ouvidas fora dos "guetos".
O jungle pode não estar no topo das listas de discos mais
vendidos. Mas não precisou conquistar o "hit parade"
para atingir todos os outros lugares, transformando-se na música
ambiente onipresente dos últimos anos. No Brasil então,
talvez por uma aliança entre o drum'n'bass e a bossa nova,
também articulada inicialmente por músicos ingleses,
a situação é quase opressiva.
Jungle é até a trilha sonora da publicidade da revista
"Época".
Sinal dos tempos. Não existe mais um território seguro
em que a arte underground ou marginal permaneça escondida
do comércio ou da caretice. As novidades mais radicais são
absorvidas quase instantaneamente por uma "indústria
cultural" sempre moribunda, mas ainda extremamente voraz. A
excitação com a descoberta do "imprevisível"
passa num piscar de olhos. As declarações de entusiasmo
inicial tornam-se um embaraço para consumidores que ainda
pretendem ocupar uma posição de vanguarda ou ter um
estilo de vida sempre distinto daquele controlado pelo gosto das
massas. Jungle? Drum'n'bass? Não gosto... É tão
1994, não é?
Ainda bem que eu tenho o álibi da "curiosidade antropológica".
Posso ir a qualquer lugar, comprar qualquer disco. Foi então
apenas por "curiosidade antropológica" -quase arqueológica-
que assisti, em Chicago, em pleno 1999, ao show de Roni Size e sua
gangue, justamente os responsáveis pelo disco que, ao ganhar
o prêmio Mercury, uma espécie de Grammy inglês,
em 1995 consolidou a mutação do jungle em "pièce
de resistance" de qualquer festa comportada, porém elegante
e "antenada". Era parte da excursão de estréia
da banda Breakbeat Era a tentativa de tocar drum'n'bass com antigos
instrumentos analógicos, como baixo e bateria.
O show também teve apresentações dos DJs Die
e Roni Size apenas nos toca-discos. Devo confessar que, apesar da
inevitável sensação de dejà vu, foram
mixagens arrasadoras, levando ao êxtase a massa de dançarinos,
o que só aumentava a expectativa com relação
à música ao vivo propriamente dita. Quando os instrumentistas
entraram no palco, não pude conter minha surpresa numa noite
em que achava que nada me surpreenderia. Mas não pela música
que começaram a tocar: inesperada era a cor da pele dos músicos:
todos brancos. A cantora que subiu ao palco logo em seguida também
era branca. O engenheiro de som que pilotava a mesa de mixagem ao
lado dos músicos também era branco. Apenas um rasta,
bem negro, supervisionava tudo, como um feitor.
Ainda não toquei num ponto extremamente importante para a
compreensão da minha surpresa: o jungle, a primeira música
britânica, é uma criação negra, inventada
a partir da releitura que DJs negros, muitos de origem caribenha,
fizeram do hip hop, que na Inglaterra se encontrou mais uma vez
com o reggae, e se hibridizou com o house e com o tecno (todos estilos
"negros"), produzindo uma sonoridade nunca ouvida em nenhum
outro lugar do mundo.
É portanto uma música negra transatlântica,
que estava ali, de volta para Chicago, cidade que inventou a house,
apresentada por músicos brancos. Músicos brancos que
quase nada acrescentavam à fórmula criada por Roni
Size, que também teve a idéia de montar a banda. Situação
que inverte o padrão secular que os europeus por séculos
impuseram à base de chibatadas: naquele palco, mais ou menos
500 anos depois que o primeiro navio negreiro aportou na América,
os negros pensam e os brancos executam. A platéia, majoritariamente
branca, não parava de dançar.
Na mesma semana, outra platéia majoritariamente branca não
parava de dançar durante o show do Olodum, parte do Chicago
World Music Festival. A imprensa e os organizadores do festival
já demostravam um melhor entendimento do que a música
dos blocos afro representa. Em 1991, também em Chicago, eu
havia visto o Olodum tocar no Museu de História Natural,
ao lado dos dinossauros e de um ritual indígena de Papua-Nova
Guiné. A imprensa dizia que nos seus ritmos era possível
reconhecer as "raízes" do hip hop e do reggae.
Agora todo mundo parece entender que os tambores de um bloco afro
são instrumentos tão modernos, tão pós-hip-hop
e tão pós-reggae, quanto os toca-discos de Roni Size.
A novidade da batucada do Olodum, como a do jungle, não pode
ser compreendida com base em argumentos musicais nacionalistas.
Tanto que a totalidade de seus ritmos ficou conhecida como samba-reggae,
um termo ostensivamente híbrido, entre o Brasil e o mundo,
com um pé no nacional-popular e outro no pop internacional.
Mas é preciso deixar logo claro que os hibridismos inventados
pelos tambores do Pelourinho, como também aqueles inventados
nos samplers do drum'n'bass, não são produtos de uma
globalização qualquer: os parceiros rítmicos
do Olodum e de Roni Size se movem num ambiente preciso, aquele da
diáspora negra, criada pelos escravos africanos, pelos africanos
que escaparam da escravidão e pelos seus descendentes.
Paul Gilroy, sociólogo inglês, divulgou o termo que
hoje é mais empregado por quem tenta refletir sobre a dinâmica
cultural dessa diáspora: "Black Atlantic". Não
é apenas um novo rótulo para um fenômeno antigo.
É também uma nova maneira de entendê-lo. Até
recentemente, a maioria dos estudos sobre "tradições
negras" era prisioneira da idéia de "raízes".
Os pesquisadores tentavam encontrar no continente americano, e onde
mais comunidades negras se estabelecessem, as "sobrevivências"
de costumes de povos africanos, que seriam julgadas autênticas
ou não a partir do grau de fidelidade com que a "origem"
era preservada. O conceito "Black Atlantic" deixa de lado
a procura da "raiz original" e cai no fluxo e refluxo
intercontinental.
Inspirado na desterritorialização deleuziana e na
não-linearidade da física contemporânea, Paul
Gilroy define o "Black Atlantic" como uma formação
rizomática e fractal, colocando-se em luta contra a "trágica
popularidade das idéias sobre a integridade e a pureza das
culturas" e também contra aquilo que chama de absolutismo
étnico.
O rizoma -por exemplo, a grama- não tem uma raiz central,
mas sim é alimentado por uma rede descentralizada de micro-raízes.
A música afro-americana também não possui uma
única raiz fincada em algum descampado subsaarino, mas criou
uma malha de tradições interconectadas de tantas maneiras
e com tantos curtos-circuitos internos, que faz com que qualquer
ritmo seja simultaneamente pai, filho, mãe, primo de todos
os outros ritmos.
Essa situação não é novidade. Desde
que o primeiro navio negreiro saiu da África, o "Black
Atlantic" se formou, violentamente. O antropólogo J.
Lorand Matory, de Harvard, mostra em estudos -polêmicos, mas
fascinantes (ver seu artigo sobre a identidade jeje, publicado no
número 5.1 da excelente revista "Mana", do Museu
Nacional)- conduzidos nas costas ocidentais e orientais do Atlântico
como é complicado falar de iorubás ou de jejes antes
da escravidão.
A moderna identidade iorubá, por exemplo, foi inventada não
em um local preciso da Nigéria, mas no trânsito entre
Lagos e Salvador, entre Ifé e Havana. Os ex-escravos que
depois da libertação voltaram da América para
a África e os outros proto-iorubás que atravessaram
o oceano várias vezes foram fundamentais para a criação
das identidades étnicas que são forças políticas
e culturais na África de hoje. Assim como não é
mais possível dizer se determinada música, da maneira
como ela é atualmente tocada na África, foi inventada
no continente "negro" ou na América.
A tarefa se torna ainda mais vã para o pop africano. As guitarras
elétricas de Kinshasa, por exemplo, são herdeiras
da rumba cubana dos anos 40 e do zouk antilhano (na verdade inventado
em Paris) dos anos 80. Todos os ritmos e todas as identidades estão
conectadas. O Atlântico é a grande rede.
Se na música pop o "Black Atlantic", e não
determinados contextos nacionais, é evidentemente o fundamento
de tudo, em outros campos artísticos, mais preocupados historicamente
com a construção de identidades locais (como a literatura),
sua influência oceânica parece estar a ganhar novas
forças.
Cito apenas um caso, para mim o mais interessante: a escrita do
carioca Alberto Mussa é produto complexo do fluxo e refluxo
transatlântico, alargando a percepção do nosso
local, brasileiro, na diáspora negra. Tanto que seu primeiro
livro (o segundo é "O Trono da Rainha Jinga", lançado
neste ano pela Nova Fronteira) chama-se "Elegbara" (lançado
pela Revan), uma justa homenagem a Exu, orixá mensageiro,
senhor da comunicação, abridor dos caminhos do "Black
Atlantic" e de toda a grande rede cósmica criada por
Olodumaré.
Leia mais: A
epifania tropicalista
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