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Vanguarda
brasileira dos anos 60 alimenta a dos Estados Unidos nos anos 90
(19/9/1999)
A
epifania tropicalista
HERMANO VIANNA
Outro
dia, recebi um e-mail inesperado de um desaparecido amigo norte-americano.
Seu texto era uma estranha confissão que começava
assim: "Sou um receptor ambivalente e vadio. Exemplo: tinha
me esquecido disso até hoje, quando, ao folhear o "New
York Times", tropecei com um artigo sobre a Tropicália.
Bandas que você me mostrou anos atrás. Sou um imbecil
de cultura pastiche".
Vindo de quem veio, de uma pessoa decididamente arredia a tudo o
que tivesse uma leve tonalidade "brasileira" ou "latina"
(para quem mesmo o reggae era insuportável), o resto da autocrítica
sinalizava algo que não devia ser apenas uma simples mudança
de opinião pessoal, mas sim uma transformação
mais geral -e sutil- do gosto de um público universitário
e "alternativo" dos Estados Unidos.
Fui imediatamente procurar o site do "New York Times",
que -surpresa!- pode ser lido gratuitamente via Internet, ao contrário
desta Folha (deixo aqui meu protesto!). Foi fácil encontrar
o artigo: chamava-se "Tropicália, Agora!", em português
mesmo, e era assinado por Gerald Marzorati, um nome que eu nunca
tinha visto associado à crítica de música brasileira,
mas que tinha crédito de diretor editorial da revista dominical
do jornal nova-iorquino.
Daquele momento em diante adquiri o costume de ler, diariamente,
o caderno cultural do "New York Times". Referências
sobre o tropicalismo ou sobre músicos brasileiros que podem
ser associados ao tropicalismo têm sido aí publicadas,
na média, mais do que uma vez por semana. Tal frequência
é motivo para uma reflexão que não precisa
ser ufanista, mas unicamente realista: nenhuma outra cultura musical
do planeta, fora a dos próprios Estados Unidos e da Inglaterra,
é tratada com a mesma atenção.
A editoria de música popular do "New York Times"
parece ter se convertido num órgão de propaganda da
música brasileira. Mas não é um caso isolado:
como já foi amplamente noticiado nos jornais brasileiros,
matérias sobre o tropicalismo apareceram recentemente em
toda a imprensa musical norte-americana e inglesa. Só para
citar um exemplo menos conhecido: a revista "The Wire",
certamente a publicação mais inteligente sobre música
que há hoje no mundo, vem lançando artigos mensais
sobre os "herdeiros" da Tropicália.
Para entender o que estava acontecendo, pedi o auxílio de
amigos jornalistas que de certa forma são protagonistas privilegiados
dessa valorização tropicalista. Todos eles me enviaram
respostas cautelosas. Ben Ratliff, crítico do "New York
Times", que também escreveu um longo artigo sobre Caetano
Veloso na "Spin" e é autor de uma introdução
discográfica ao tropicalismo na "The Wire", tentou
conter uma empolgação que eu não havia apresentado:
"Não acredito que a música brasileira vá
ser a "next big thing".
Penso somente que ela se tornará uma parte necessária
da coleção de discos de qualquer "connoisseur",
e vagarosamente essas influências vão infiltrar-se
no resto".
Julian Dibbell, que na década de 80 publicou muitos artigos
sobre música brasileira no "Village Voice" (incluindo
aquela comparação entre João Gilberto e Elvis
Presley, citada por Caetano Veloso em "Verdade Tropical"),
me respondeu com várias interrogações: "O
que as pessoas no Brasil pensam de tudo isso? Elas entendem quão
marginal o culto americano da Tropicália realmente é,
incluindo a popularidade do Beck e a publicidade da Banana Republic?
Elas entendem que mesmo assim é algo importante, na medida
em que os cultos americanos marginais o são?".
Mas antes de fazer essas perguntas ambíguas, Julian tocou
naquele que me parece ser o ponto mais importante do novo "culto"
americano à Tropicália: "O pendor roqueiro da
recepção atual, em oposição ao contexto
"world beat" de dez anos atrás".
Certamente: o tropicalismo é hoje saudado quase como se fosse
uma escola de vanguarda dentro da já longa história
do rock ou da música pop internacional. A proveniência
brasileira de sua música, se é algo que lhe dá
charme e importância, não é exatamente sua qualidade
mais relevante ou comentada, nem aprisiona os achados estéticos
tropicalistas sob o rótulo do exotismo. Há mesmo um
esforço evidente dos críticos para des-"exotizar"
o som tropicalista, não para negar sua "brasilidade",
mas para torná-lo apetecível e inteligível
para os leitores interessados naquilo que o rock ou pop produziu
de mais "vanguarda".
Então, Caetano Veloso, segundo a "Spin", "pode
bem representar o maior pop star do mundo". Para explicar o
som dos Mutantes, a "The Wire" manda o leitor imaginar
uma mistura de Pierre Henry (pioneiro da música concreta),
Beatles e Frank Zappa. E o segundo disco de Gilberto Gil, para o
"New York Times" (sua editoria de música popular
é comandada por Jon Pareles, que também foi um dos
dois editores da "Encyclopaedia of Rock & Roll", da
"Rolling Stone"), é "um dos melhores discos
de rock de todos os tempos".
Note bem: não é um dos melhores discos de "world
music" ou de qualquer outro rótulo semelhante usado
para isolar (ou "proteger", como quem protege uma espécie
biológica em extinção) as músicas produzidas
fora do eixo Los Angeles-Londres. É um dos melhores discos
de rock, e ponto. Uma afirmação como essa seria impublicável
na imprensa anglo-saxã -tanto "mainstream" quanto
"underground"- até bem recentemente. Ela certamente
revela uma mudança de perspectiva que vale a pena ser explorada.
Para começar: é preciso saber se rock ou pop continuam
a ter o mesmo significado de tempos atrás. Um outro artigo
recente do "New York Times", abordando a situação
atual e geral do rock norte-americano, colocava essa interrogação
na sua manchete: "Esperto, lírico, mesmo polido, mas
é rock?". Para seu autor, Eric Weisbard, estamos vivendo
"o triunfo do bom gosto" na música popular. Ao
contrário de uma música barata, raivosa ou arriscada,
o rock teria se transformado quando, por exemplo, o Sonic Youth
toca no Lincoln Center -numa "outra opção auditiva
para os sofisticados urbanos" ou num "ideal de cosmopolitismo
afluente". Nessa situação, "melhor que os
meninos dos Rolling Stones é Bob Dylan, um cantor-compositor
enigmático, que roubou o centro.
Reconhecimento semelhante tem sido dado aos Dylans de outros países:
Serge Gainsbourg da França; Caetano Veloso do Brasil".
É interessante ver que a Tropicália, que se apropriou
de tantos elementos que eram símbolos consensuais do "mau
gosto" (Caetano cantando "Coração Materno",
de Vicente Celestino...), tenha hoje lugar garantido no "triunfo
do bom gosto" que predomina no "melhor" do rock "alternativo"
atual, de Tortoise a Cornelius. É mais interessante ainda
ver a Tropicália sendo valorizada, simplesmente, como parte
do "melhor" do rock, quando temos um conhecimento detalhado
em "Verdade Tropical" das dificuldades de relacionamento
entre tropicalistas, formados pela Bossa Nova, e a cultura rock.
Caetano é bastante explícito a esse respeito: "Imagine-se
com que força eu não tive que pensar contra mim mesmo
para chegar a ouvir Roberto Carlos e Beatles e Rolling Stones e
mesmo Elis com amor".
Os novos apologistas norte-americanos não parecem perceber
essa tensão que está na origem do tropicalismo. Por
isso merecem a reprimenda publicada em "O Estado de S. Paulo"
-de Tom Zé: "Eles falam como se Oswald, sua antropofagia
e o rock internacional já estivessem no âmago de toda
a tropicalidade, como a árvore na semente de Parmênides.
Não estavam". Tom Zé é até mais
contundente: o artigo de Gerald Marzorati seria "coisa de estrangeiro,
falando coisa do Brasil, esse tipo de coisa na qual a gente se sente
uma coisa", além da "imposição da
palavra escrita como meio privilegiado, que representa o braço
do colonizador".
Mas sempre é interessante escutar estrangeiros, mesmo colonizadores,
falando coisas do Brasil. Muitas vezes suas perspectivas coisificantes
iluminam aspectos de nossas culturas que já estavam por nós
coisificados. Suas consequências são mais complexas
que uma simples e pura reificação. Tanto que reescutar
os discos tropicalistas depois de ter lido as "coisas dos estrangeiros"
pode ter o efeito de uma epifania. Afinal, que coisas tão
maravilhosas esses colonizadores vêem na Tropicália?
E por que só se interessaram por ela agora, mais de 30 anos
depois de que tudo aconteceu no Brasil?
Faça a experiência. Escute o segundo disco do Gil,
aquele com a capa do "fardão", como se fosse um
dos melhores discos de rock de todos os tempos (uma das infinitas
possibilidades de escutá-lo, é certo). Compare-o com
o "Tago Mago", do Can, ou com o "Faust Tapes",
que também entraram recentemente para a lista dos melhores
do rock. Não é que as "coisas" ganham realmente
um novo sentido? A intervenção sonora "drástica"
proposta por esse disco, e pelos outros lançamentos tropicalistas,
já foi tão coisificada ou naturalizada que nem percebemos
como é estranho ter essas músicas entronizadas no
"melhor da MPB", servindo de fundamento para todos os
sucessos populares que vieram depois delas. O braço do colonizador,
talvez sem querer, nos faz estranhar aquilo que "terá
sido o óbvio".
Gerald Marzorati, mesmo falando da terra de Andy Warhol, é
bem claro na sua explicação para o "atraso"
norte-americano com relação ao tropicalismo: "Só
com o advento aqui de uma estética aproprie-e-recicle, combine-e-recombine,
pode a música dos tropicalistas (...) finalmente ser ouvida
por aquilo que ela é: pop radicalmente engenhoso". Ben
Ratliff vai além: "Você tem que amar colisões
para penetrar na música brasileira; você não
pode apegar-se a noções de pureza". O enfoque
certamente é novo: antes a cultura brasileira só era
elogiada na grande imprensa internacional quando parecia pura, autêntica,
quando se mantinha afastada da contaminação do pop
ou do moderno. Hoje, o Brasil alimenta uma "nostalgia de modernidade"
(a expressão foi aplicada nesse contexto por Arto Lindsay),
de uma modernidade "paralela" (território dos Mutantes,
de Lygia Clark, mas também de Oscar Niemeyer!) na qual as
colisões, as apropriações e o "cut-and-paste"
se tornaram padrão antes do photoshop, do protools ou do
sampler serem colocados à venda.
Em 1968, no artigo "Viva a Bahia-Iá-Iá",
Augusto de Campos já apontava na invenção tropicalista
tudo aquilo que hoje deslumbra os jornalistas norte-americanos:
as estratégias de montagem e justaposição;
a presença da música aleatória e concreta;
o parentesco com a pop art e com a "bricolage" de Lévi-Strauss.
A estada de Hans Joachim Koellreutter na Bahia, no final dos anos
50, e o encontro dos baianos-futuros-tropicalistas com os paulistanos
da Música Nova possibilitaram que os procedimentos eletroacústicos
e concretos que estão hoje na base da produção
do pop global ("ghetto tech", "two step" e todo
o resto) fossem absorvidos pelas massas brasileiras (que nunca mais
esqueceram "Alegria, Alegria") com um sucesso que "Revolution
nº 9" dos Beatles nunca tentou conquistar -e que só
se estabeleceu em disco no rock alemão (feito por alunos
de Karlheinz Stockhausen, como também o foram Rogério
Duprat e Júlio Medaglia, os mais conhecidos arranjadores
dos discos tropicalistas) no início dos anos 70.
Então, o que foi bom para as massas do Brasil é hoje
bom para a "vanguarda" dos Estados Unidos? É possível
ironizar a nova situação, mas não há
como ignorá-la. O lugar da cultura brasileira no "concerto
das nações" já sofreu um pequeno, mas
decisivo, deslocamento com o tal "culto" do tropicalismo.
Nossa macumba pra turista agora vai ter que ser diferente. Até
bem pouco tempo, o filme "Black Orpheus" (assim, em inglês
mesmo) tinha sido o estopim do interesse pelas "coisas brasileiras"
na maioria dos estrangeiros que me declararam seu amor pelos nossos
trópicos.
Hoje, muita gente vem me falar da primeira vez que ouviu um certo
disco de Tom Zé como sua descoberta do Brasil. O mundo "evolui"?
É bom manter-se desconfiado. Mas de uma coisa eu não
tenho nem sombra de dúvida: com Tom Zé no lugar de
Marcel Camus, a conversa com gringos amantes do Brasil se torna
muito, muitíssimo mais prazerosa.
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