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País
encontra maneiras criativas de escapar do multirracialismo oficial
(18/7/1999)
Cingapura
em pedaços
HERMANO VIANNA
Na
opinião de críticos e leitores da "Condé
Nast Traveler", revista para turistas ostensivamente "sofisticados",
há muitos anos a Singapore Airlines é classificada
como a melhor companhia aérea do mundo. Então, lá
estava eu no seu vôo SQ861, indo de Hong Kong para, é
claro, Cingapura, não sabendo se tentava descobrir sinais
do rio Mekong (e das paisagens de "Apocalypse Now") pela
janela, ou se mergulhava na realidade asiática paralela de
um dos incontáveis games da Sega (ou seria Nintendo?) que
tinha à disposição no monitor de vídeo
da minha poltrona. Para complicar mais a minha vida, a aeromoça
ainda queria que eu fizesse uma escolha entre vários tipos
de menus étnicos para o jantar.
Quando já tinha comido minha opção "international",
a mais burra possível, e pensava estar livre de tanto questionamento,
outra aeromoça me atacou: quer chá inglês ou
chá chinês? Sem titubear, e sem pensar muito no assunto,
respondi: "Chinês". A aeromoça, com o sorriso
mais gentil que vi na vida, comentou: "Engraçado, só
os ingleses pedem chá chinês. Todos os asiáticos
escolhem chá inglês". Para não complexificar
ainda mais a enorme sofisticação e o fino humor de
seu comentário multicultural (deixo ao leitor a tarefa de
enumerar todas suas implicações e, mesmo, com meus
olhos "puxados", se fui classificado entre asiáticos
ou ingleses...), nem lhe disse que sou brasileiro.
Sendo brasileiro, estando tão longe de casa e ainda por cima
sendo antropólogo, viciado nas sutilezas da percepção
sobre diferenças culturais, até que teria direito
de interromper o serviço da aeromoça com algumas perguntas.
Qual seria, para ela, a razão da preferência asiática
pelo chá inglês? E, já que os asiáticos
estão longe de ser um povo culturalmente homogêneo,
não seria possível identificar alguns padrões
variados no gosto pelo chá de, por exemplo, chineses ou indianos?
Uma cidadã de Cingapura, com "feições"
chinesas, que participava de uma equipe de bordo comandada por uma
comissária de "traços" indianos, cujo uniforme
era uma estilização chique e ocidentalizada da indumentária
malaia tradicional, bem que poderia ter alguma coisa interessante
para dizer sobre o assunto. Mas, não querendo transformar
a viagem num vertiginoso debate sobre os mecanismos da construção
identitária, resolvi continuar calado.
Meu silêncio tem limite. Já dentro do táxi que
peguei no Changi, o aeroporto-shopping center (com até uma
filial do Planet Hollywood) de Cingapura, minha curiosidade antropológica
atingiu um nível incontrolável. Sobre a tela de computador
que funciona como taxímetro, o motorista de "biotipo"
malaio tinha colocado um Buda, daqueles sorridentes e enormes de
gordos. Já fiquei com uma pulga atrás da orelha: os
malaios de Cingapura não são constitucionalmente (explico
depois) definidos como muçulmanos? Estava, então,
diante de um espécime raro, minoritário.
De repente, no seu carro, começou a tocar um sininho, com
um badalar singelo e, aos meus ouvidos contaminados por orientalismos
baratos, levemente transcendental. Achei que anunciava a hora de
oração, algo assim. Fiquei esperando educadamente
o fim do badalar. Parou. Recomeçou. Não resisti: "O
que esse sino significa?". O motorista apenas apontou para
um outro sinal luminoso no seu painel de controle. Estava escrito:
"Over the speed limit". Aquela visão atuou sobre
a minha consciência com a bendita violência de um koan
zen. Foi o que bastou para eu ter uma iluminação pós-moderna,
ali mesmo, na hora.
Deixei de lado, por alguns momentos, as preocupações
sobre "raça e história". Caí na realidade
imediata. Cingapura nos é sempre apresentada como a terra
que conseguiu unir capitalismo high-tech com controle político-social
absoluto. Até a venda de chiclete é proibida, para
não sujar as calçadas. O escritor cyberpunk William
Gibson, horrorizado, disse que o país é uma "disneylândia
com pena de morte".
Minha primeira experiência em solo cingapuriano já
me fazia duvidar da extensão do controle, ou da introjeção
desse controle pelos indivíduos, em suas vidas cotidianas.
O motorista ultrapassava o limite de velocidade permitido naquela
estrada e não parecia estar se sentindo nem um pouco culpado
por isso. Outros carros nos ultrapassavam, mostrando que o desrespeito
às leis do trânsito poderia ser tão generalizado
quanto no Rio ou em Nápoles. Não, aquela não
era a imagem esperada de um país dominado pelo Big Brother
travestido de Tigre Asiático.
Os cidadãos de Cingapura também encontraram maneiras
criativas para suavizar a rigidez do multirracialismo oficial imposto
pelo governo. Apesar de o país ser tão jovem, tendo
se tornado independente em 1965 (e dizem que o Brasil ainda é
um país jovem...), sua política cultural já
passou por duas orientações algo divergentes. Num
primeiro momento, mesmo com a população classificada
em "raças" distintas (chineses, a maioria da população;
indianos; malaios; "outros"), havia o interesse nítido
de criar uma identidade nacional cingapuriana, que se expressava
preferencialmente em língua inglesa.
No início dos anos 80, dizendo estar mais preocupado com
a "ocidentalização" (sinônimo, muitas
vezes, de liberalismo e individualismo) da cultura do país,
o governo mudou de atitude: passou a pregar a volta dos "valores
asiáticos", obrigando inclusive todos os estudantes
a aprender suas "línguas-mães", isto é,
as línguas faladas nos lugares de onde vieram seus antepassados.
Língua, cultura, religião e raça são
termos que se confundem (o multirracialismo, nesse caso, é
um multiculturalismo) na Constituição de Cingapura.
Para escapar da complexidade, da fragmentação e da
mutabilidade quase infinita das maneiras como os cingapurianos se
auto-identificavam, está constitucionalmente definido, por
exemplo, que a língua mãe dos chineses é o
mandarim (mesmo que seus antepassados, na realidade, falassem hokkien
ou cantonês) ou que a religião dos malaios é
o islamismo.
Tais escolhas políticas mostram, com clareza, como essas
definições são sempre arbitrárias na
sua tentativa de estabelecer fronteiras claras que ignorem mestiçagens
e hibridismos. Se compararmos as opções de Cingapura
com as da Malásia, país vizinho onde também
há malaios, chineses, indianos e "outros", veremos
que definições de identidade separadas por poucos
quilômetros de distância podem variar drasticamente.
Na Malásia, as crianças "chinesas" podem
estudar cantonês (por isso Kuala Lumpur consome, além
de heavy metal malaio e dangdut indonésio, o pop de Hong
Kong; enquanto Cingapura é dominada pelo pop de Formosa),
e os malaios têm privilégios (por exemplo: mais vagas
nas universidades; linhas de crédito exclusivas para suas
empresas) de "bumiputras", termo derivado do sânscrito
para "filhos da terra", mesmo tendo, em épocas
remotas, também chegado ali como imigrantes, vindos (com
algumas escalas, é claro) da África, como todos os
seres humanos.
Os grupos mais obviamente mestiços (pois todos seres humanos
são mestiços) têm que rebolar para encontrar
um lugar nessa compartimentalização oficial. Os eurasianos
de Cingapura resolveram reviver suas "raízes portuguesas"
de Malacca (cidade, hoje da Malásia, conquistada por Afonso
de Albuquerque em 1511, mas que só permaneceu sob o jugo
de Lisboa por um século) e pegaram um vôo da Singapore
Airlines para Macau, onde foram aprender as danças do Minho
("danças-mães"?) que apresentam no desfile
do Dia da Independência. Muitos deles acham isso tudo meio
ridículo: prefeririam, em vez de eurasianos-cingapurianos,
ser apenas cingapurianos; ou nem isso: prefeririam cuidar de suas
múltiplas identidades (quem disse que temos apenas uma?)
em paz.
Não estão sozinhos. Najip Ali, "malaio",
apresentador de TV e líder da galera funk e descolorada de
Cingapura, faz pregações de individualismo/tribalismo
asiático radical, estabelecendo redes com estilistas de Bali
e coreógrafas de KL (Kuala Lumpur, para os íntimos).
Chris Ho, "chinês", roqueiro local, tem conexões
cada vez mais fortes com monastérios budistas de Bancoc.
E o grupo "TheatreWorks" produz peças em "singlish",
linguagem mestiça das ruas de Cingapura (proibida pelo governo
de ser usada em comerciais, isso numa televisão que muitas
vezes tem legendas em três línguas e três alfabetos),
e já estreou uma versão de "King Lear" com
um mestre nô do Japão, um ator da ópera de Pequim,
um dançarino clássico tailandês e rappers de
todo o sudeste asiático.
Observar essa movimentação asiática, pró
e contra mestiçagem, do ponto de vista "brasileiro",
pode ser uma tarefa muito educativa, ou pelo menos que dê
vida nova a debates já cansados da comparação
obsessiva com o "caso norte-americano". Talvez as complexas
experiências asiáticas nos ensinem, a partir de exemplos
bastante evidentes, uma velha lição de Lévi-Strauss:
a de que raça não existe e que cultura é outro
departamento. Ou então nos façam compreender definitivamente
aquilo que Joel Rufino dos Santos resumiu com precisão: "O
racismo pode ser definido então como a imposição
de relações de dominação disfarçadas
sob a crença de que são raciais, isto é, de
que há raças".
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