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Espalhados
pelo país, os Centros de Tradições Gaúchas
reinventam as políticas de identidade
(20/6/1999)
Geléia
geral brasileira
HERMANO VIANNA
Há
muitas estradas, todas de terra e não exatamente bem conservadas,
que podem ser bravamente percorridas por quem quiser conhecer a
região dos chapadões e rios que atuam como uma espécie
de "atrator estranho" geográfico, "o meio
do mundo", na narrativa de "Grande Sertão: Veredas".
O viajante pode começar sua aventura em Januária,
nas margens do rio São Francisco, quase fronteira entre Minas
Gerais e Bahia. De lá, aconselho dois trajetos. O primeiro
passa pelas cidades de São Francisco, São Romão
e depois por Arinos e Buritis, quase sempre margeando ou o Velho
Chico ou o Urucuia, aquele que para Riobaldo é o "rio
meu de amor", "rio de braveza", de águas "claras
certas".
O segundo trajeto tem relevo mais acidentado: logo na saída
de Januária, passa pelas cachoeiras do rio Pandeiros; vai
direto para serra das Araras, "aonde tudo que era bandido em
folga se escondia"; e, antes de corrigir o rumo na direção
de Arinos, cruza mais uma chapada, talvez a mais inesquecível
de todas elas, cuja paisagem não foi descrita nem por Riobaldo
nem por nenhuma outra personagem de Guimarães Rosa.
A travessia das chapadas é quase sempre monótona.
O emocionante, o pitoresco são suas beiras, quando o viajante
sobe ou desce. Lá em cima, a reta domina, se perdendo no
horizonte.
Mas naquela chapada pós-serra das Araras não há
nem a vegetação contorcionista do cerrado para distração.
O que se vê quando se atinge seu topo, sem nenhum aviso, sem
nenhuma preparação emocional, é uma imensa
plantação de soja, de perder de vista, de ofuscar
os olhos, como se todo o mundo tivesse se transformado num deserto
verde ou em semelhante inferno ecológico. Um "Liso do
Sussuarão" às avessas.
A surpresa não termina por aí. Depois de dezenas de
quilômetros naquela "nonada" total, quando os olhos
do viajante conseguem se acostumar com o verde apocalíptico
da paisagem, é possível identificar cabeças
louras no meio da soja. Demora um pouco, mas logo aparecem também
crianças louras brincando na beira da estrada, e em breve
tempo se chega à Vila dos Gaúchos, lugarejo ignorado
pelo mapa do IBGE, o último publicado em escala 1:1.000.000.
Qual seria a reação de Riobaldo ao se deparar com
essa gente? Ainda pensaria estar no sertão?
O sertão está em toda parte. Os gaúchos também
estão em toda parte: em Roraima, em Rondônia, no Ceará,
em São Paulo. Eles arrumam um jeito de permanecer gaúchos,
tomando chimarrão, mantendo sua "tradição",
em qualquer lugar, mesmo no meio do mundo do Urucuia, a 5 km do
posto do Ibama que assinala o início do Parque Nacional Grande
Sertão: Veredas. Os gaúchos inventaram uma rede de
CTGs, ou Centros de Tradições Gaúchas, como
máquina poderosa para a replicação de seu código
"tradicionalista" e seu peculiar "modo de vida".
Não há nada parecido, nem tão eficaz, em outros
movimentos culturais brasileiros. Não há, por exemplo,
um CTC, Centro de Tradições Cariocas, ou Cearenses.
Imagine um baile "tradicionalista" em Jequié, terra
de Waly Salomão, com todas as meninas vestidas de baianas
e os meninos de capoeiristas. Imagine um forró nordestino
no Acre, em que só se pudesse dançar com chapéu
de couro. Pois no CTG de Boa Vista, a maior associação
civil de Roraima, ou em qualquer outro dos 2.000 CTGs registrados
em território nacional (1.500 no Rio Grande do Sul), os homens
comparecem às festas de bombachas e as crianças têm
aulas de rancheira, maçanico ou chimarrita, seguindo os passos
exatos descritos no "Manual de Danças Gaúchas",
editado em 1955 por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa,
dois tradicionalistas pioneiros, fundadores em 1948 do primeiro
CTG, o famoso "35".
Tanta empolgação por determinado estilo de vida e
festa acaba chamando a atenção das comunidades de
não-gaúchos que vivem nos arredores do lugar onde
foi implantado um novo CTG, seja ele no sertão de Guimarães
Rosa ou no sertão de Graciliano Ramos.
Como a Carta do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), documento
que tenta regulamentar as ações dos CTGs, não
define precisamente quem é gaúcho, então, em
princípio, qualquer pessoa pode se associar a um CTG e reivindicar
sua identidade de gaúcho.
Em muitas cidades brasileiras, para muitos jovens, ser gaúcho
se tornou uma "opção identitária"
tão válida, tão "reconfortante" e
tão divertida (até porque, naqueles "meios de
mundo", os CTGs organizam as melhores festas) quanto ser punk
ou ser surfista.
A situação pode se tornar auspiciosamente confusa.
Em São Mateus, cidade "polonesa" do Paraná,
jovens totalmente pilchados (isto é, vestidos com os trajes
tradicionalistas), no intervalo de um show de nativismo pop da banda
Tchê Guri, ficaram espantados por eu ainda pensar que para
ser gaúcho é preciso ter nascido no Rio Grande do
Sul ou, "pelo menos" (eu suplicava, para salvar minha
"caretice" classificatória), ser descendente de
imigrantes vindos do Rio Grande do Sul.
Para me confundir mais ainda, outros gaúchos, estes de Porto
Alegre, em pleno "35", me contaram orgulhosos que a menina
que foi eleita a prenda (mulher em gauchês) mais bonita num
dos últimos concursos desse tipo promovidos pela Confederação
Brasileira de Tradições Gaúchas (CBTG) é
uma morena maranhense, filha de maranhenses, associada a um CTG
de Brasília, que nunca tinha posto os pés no Rio Grande
do Sul, apesar de ter respondido acertadamente a todas as perguntas
sobre a história desse Estado, etapa obrigatória da
eleição.
Com tantos casos como esses, os CTGs se tornaram locais privilegiados
para observar os mecanismos daquilo que um dia Eric Hobsbawm denominou,
com uma eficácia mimética invejável, a "invenção
das tradições", e os problemas que todas invenções
desse tipo acarretam. O difícil não é apenas
saber quem é ou pode ser gaúcho, mas também,
identificando o gaúcho, definir o que vem a ser sua tradição
ou o que torna um gaúcho diferente dos não-gaúchos,
ou ainda o que faz um gaúcho para ser gaúcho. O gaúcho
dança danças gaúchas? O gaúcho veste
roupas gaúchas e assim por diante? Mas quem determina o que
há de gaúcho numa roupa, numa dança? Quem diz
o que é gaúcho e o que não é? A carta
do MTG? Os manuais de Paixão Côrtes?
Um debate fascinante, travado no âmbito dos extremamente populares
concursos de dança entre CTGs, mostra como, no interior do
tradicionalismo, há várias definições
contrastantes sobre o que é pureza e autenticidade em termos
de costumes gaúchos. O próprio Paixão Côrtes
combate, ao mesmo tempo, a "falsa arte nativa" ("há
muita gente brincando de fazer tradição") e a
"mesmice" criadas, muitas vezes, por "aqueles que
atribuem ao livro "Manual de Danças Gaúchas"
a função representativa de uma Bíblia sobre
nossos temas coreográficos".
Com a autoridade de quem fundou o primeiro CTG, falando em nome
da "ciência folclórica", ele condena os trajes
"erroneamente seriados" dos grupos de dança (cada
CTG costuma, ou costumava, mandar fazer trajes iguais, uniformizados,
para todos seus dançarinos) e pede uma dança que não
seja "uma ação matemática, mecanizada,
robotizada". Em outras palavras: "Preservar a tradição
não significa só ficar nos mesmíssimos fatos
de restringidas informações do passado". Paixão
Côrtes, o defensor da autenticidade, quer renovação!
Essa intervenção só aparentemente paradoxal
deixou os grupos de dança gaúcha apavorados e tontos.
Afinal, estavam seguindo regulamentos de concursos. Agora há
visões diferentes na interpretação desses regulamentos,
sobre qual é a maneira certa de dançar, sobre qual
é o autêntico traje gaúcho. Como agradar a todos
os lados e não perder pontos?
A questão da renovação também virou
pauta do Congresso Tradicionalista de 1998, em que foi aprovada
por unanimidade uma proposta que alterava os trajes dos peões
e prendas. Mudanças lentas: um pequeno decote foi permitido
para as prendas. Mas os homens ainda não podem usar manga
curta.
O debate revela impasses e dúvidas de qualquer tipo de tradição.
A conquista da autenticidade não é a descoberta de
uma pureza perdida num remoto início da História.
Parodiando Cazuza: nossa autenticidade a gente inventa, às
vezes pra se distrair, às vezes pra guerrear. É bom
que os CTGs discutam em público essas questões. É
bom saber que os gaúchos podem mudar seu traje autêntico.
É bom saber que eu posso ser gaúcho, se quiser. Pois
eu não posso escolher ser sérvio. Nem posso escolher
"pertencer" à etnia albanesa. Pena.
A autenticidade muda porque as pessoas mudam. Os CTGs parecem estar
inventando uma outra política da identidade. Uma política
que, para dar certo, deve partir de uma visão da natureza
humana que leva em conta o que um dia, perto da futura Vila dos
Gaúchos, disse Riobaldo: "Mire, veja: o mais importante
e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que
a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão".
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