Postura afirmativa dos índios modificará aos poucos a noção de brasilidade

(23/5/1999)

O epicentro pop da Amazônia

HERMANO VIANNA

Na adolescência, como todo mundo da sua turma, Ito adorava filmes de caubói. Seu imaginário era povoado por ataques de índios nas paisagens desertas do Arizona. Índios, para ele, só podiam ser índios americanos. Tanto que, ao se vestir de índio para brincar no boi-bumbá, não podia faltar a calça comprida com franjas coloridas dos dois lados. Todos os integrantes das "tribos" dos bois de sua cidade eram conhecidos como "tontos", uma homenagem carinhosa ao companheiro do Zorro.

Nada disso causa espanto. Nem o fato de Ito morar em Parintins, um município de nome indígena, que tem aldeias indígenas bem próximas ao seu centro urbano, habitadas por índios cuja indumentária nada tem a ver com o padrão criado por figurinistas de Hollywood. O que realmente surpreende é descobrir que Ito, quase sem querer, transformou-se num dos principais articuladores de uma pororoca no inconsciente amazônico, que veio justamente derrubar esse império do Velho Oeste.

Tudo começou com uma brincadeira, em 1982. Cansado de ser sioux ou navajo, ele -junto com seu primo Amarildo- criou uma fantasia de índio brasileiro para a sua tribo. Mais do que isso: ensaiou com os amigos um ritual indígena que seria encenado no meio da apresentação do seu Boi e pediu para outros amigos uma música que seria a trilha sonora da novidade. O sucesso foi tão grande e teve repercussão tão decisiva em toda a floresta que o boi-bumbá de Parintins virou o epicentro pop da Amazônia legal.

Hoje, no bumbódromo em junho e durante todo o resto do ano em festas-clones (como o Festival do Peixe Ornamental, em Barcelos), é possível ouvir dezenas de milhares de pessoas de todas as cores berrando seu orgulho de ser índio e mandando recados ecologicamente furiosos para o invasor "branco". Há pouco mais de uma década, cenas como essa seriam impensáveis. Mestiços faziam o possível para esconder sua ascendência indígena, vítimas de um velado racismo, não menos atroz por ser velado. Agora, cantando as letras das toadas de boi, todos reivindicam sua ancestralidade de povo da floresta, como os baianos propagandeiam suas "raízes africanas" no Carnaval. Essa atitude é inédita e seus efeitos ainda mal podem ser percebidos pelo resto da cultura do país.

É claro que Ito não produziu sozinho essa "revolução de mentalidade". Ele atuou mais como uma "antena", captando um clima geral de mudança que a festa de Parintins apenas (o que não é pouca coisa) acelerou e "alegorizou". Diagnóstico fácil: o bumbódromo é um dos palcos onde a Amazônia, sem pedir licença a ninguém, redefine seu lugar na cultura brasileira. Como a floresta já retomou a Transamazônica, os "novos índios" reescrevem a trama do boi e fazem dela o seu "ritual".

O sucesso do boi, mesmo com sua ramificação parisiense (vide Carrapicho), ainda é restrito à região Norte. Porém esse é um caldeirão pronto para explodir. O que vai sair dali de dentro, ninguém sabe. A cultura brasileira, em seus 500 anos, fez de tudo para ignorar o fato de ser produzida num país que, obviamente, tem o "pulmão" (e 60% de seu território) amazônico. Querer ver a brasilidade resumida a uma estreita faixa de litoral afro-brasileiro é um sonho pouquíssimo sustentável de muitos definidores da "identidade nacional". Como diz Ailton Krenak, no esquema "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, o lugar do índio é aquele de quem espreita. Prenuncia o momento do ataque de quem ficou de fora (do canavial e do Carnaval) esse tempo todo.

Quando o Brasil se descobre amazônico, descobre também que a Amazônia não se confunde com nenhum dos estereótipos que dela foram criados. No Cave du Conde, excelente restaurante de São Gabriel da Cachoeira, converso com um jovem índio que, apesar de falar perfeitamente tanto o tucano como o português ("não tem uma língua que eu fale "melhor'"), só pensa em tucano. Ele também diz ter riscado a palavra "descobrimento" de seu vocabulário (adotou "invasão"); afirma que não trocaria a cidade pela aldeia indígena (e não se sente menos índio ou mais culpado por isso); e argumenta que, ser índio ou brasileiro, "depende da ocasião".

Em outra fronteira, no Acre, assistindo a uma partida de futebol realizada justamente na hora em que o Brasil jogava na Copa de 1998, um seringueiro me conta que, depois de uma greve de fome de quase um mês, desesperado, seu pessoal marchou (crianças à frente) em direção à tropa da polícia cantando o Hino Nacional, "para mostrar que somos brasileiros".

Em algum lugar entre aquele campo de futebol de Xapuri, o radar do Sivam de São Gabriel da Cachoeira, o bumbódromo de Parintins, qualquer culto do santo Daime e qualquer ponto de venda de açaí, está sendo produzido o futuro xamânico/"perspectivista" da nossa cultura. Um futuro que, imitando a biodiversidade de seu ambiente gerador, terá uma profusão amazônica de diferentes definições do que é ser brasileiro e de qual a ocasião propícia para sê-lo. Ito (Aílton Carvalho Teixeira), ao trocar sua roupa de tonto por outra, de índio brasileiro, mal sabia que, na verdade, estava trocando fantasias de todo o país.

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Luiz Costa Lima