|
Rappers
brasileiros fazem crítica da desigualdade e redefinem as
relações raciais
(28/3/1999)
Vozes
não-cordiais
HERMANO VIANNA
Maputo,
24/10/97. Primeiro show de rap realizado em território moçambicano,
mais precisamente no Centro Cultural Franco-moçambicano,
situado na praça da Independência, esquina com a avenida
Samora Machel, a meio caminho entre as avenidas Karl Marx e Vladimir
Lênin. A platéia, excitadíssima e elegantíssima
(Wu Wear, do Wu-Tang Clan, era a grife mais popular entre as dezenas
de clones de Naomi Campbell e de Snoop Doggy Dogg), parecia que
nunca tinha feito outra coisa na vida além de frequentar
shows de rap. Aparentemente, não havia diferença entre
aquele show -em matéria de danças, roupas, resposta
do público e comportamento no palco- e qualquer outra apresentação
de rap realizada em qualquer outro lugar do mundo. Mas, pelo menos
às vezes, as aparências enganam.
Os moçambicanos trafegaram numa frenética montanha-russa
de transformações políticas radicais nos últimos
30 anos. Muitos jovens ainda pensam suas vidas divididas em vários
tempos: o tempo dos portugueses; o tempo de Samora; e, agora, o
tempo do FMI. De colônia lusitana para o coletivismo marxista
e daí para a MTV (via uma África do Sul pós-apartheid)
num piscar de olhos.
Tudo muda, cada vez com maior velocidade: é preciso então
se acostumar a uma situação eternamente transitória,
impermanente e imprevisível. Um motorista de táxi,
ao ver duas meninas fumando maconha na rua, comentou: "Se fosse
no tempo de Samora, elas seriam colocadas num Antonov (avião
de carga soviético) e iriam passar uns bons anos num campo
de reeducação em Niassa (uma espécie de Sibéria
escaldante local)". Não era necessário consumir
drogas para ser reeducado: há menos de dez anos, até
vestir uma calça jeans era considerado um sinal evidente
de americanização ou alta traição ideológica.
Realmente as coisas mudaram: o primeiro show de rap realizado no
país demonstrou, com louvor, que a juventude tomou gosto
pela globalização americanizada, com uma rapidez e
uma esperteza impressionantes. Um gosto, já de início,
crítico: o rap moçambicano, ao mesmo tempo em que
celebra a possibilidade de ter um Nike Air (e a estréia,
naquele mesmo dia, do presidente Chissano numa reunião da
Commonwealth), faz a crítica feroz da pobreza criada pelo
neoliberalismo globalizado. O curto-circuito de valores não
deixa de ser uma faceta inebriante da desterritorialização
de uma cultura americana vitoriosa na sua esquizofrenia.
Rio de Janeiro, 15/10/98. Cacá Diegues me liga convidando
para o show dos Racionais na quadra da Tradição. Convite
assim não pode ser recusado: o cineasta mais ideologicamente
mestiço do Brasil oferecendo espaço em camarote para
a apresentação de uma banda conhecida por sua posição
radical antiideologia-da-mestiçagem, a ser realizada em quadra
de escola de samba (ainda por cima chamada Tradição!),
no epicentro do território de um funk carioca que tudo tem
feito para ignorar as lições doutrinárias do
rap paulista. Uma noite que prometia ser certamente inesquecível.
E foi. A quadra estava superlotada. E o subúrbio do Rio parecia
ter se transformado numa sucursal da periferia de São Paulo.
Era como se o DJ Marlboro ou a dupla Claudinho e Buchecha nunca
tivessem feito sucesso na cidade. Ao mesmo tempo, a platéia
parecia estar num show da Legião Urbana. Todo mundo sabia
cantar letras quilométricas do começo ao fim, como
se aquilo não fosse rap, como se a banda do palco estivesse
entoando a mais perfeita coleção dos mais assoviáveis
hits pop.
Depois do sucesso comercial retumbante dos Racionais, não
deve ser difícil ter uma idéia sobre o que os funkeiros
cariocas aprenderam a cantar. Na introdução de um
dos raps, o ouvinte se defronta com a enumeração dos
seguintes dados estatísticos: "A cada quatro pessoas
mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades
brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro
horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo".
Há negros. Há brancos. Não há mais indefinição
mulata entre uma "raça" e outra, pelo menos não
no Brasil descrito no rap dos Racionais, pelo menos não como
valor a ser cultivado como motivo de ufanismo cultural. Então,
há também quem diga que o sucesso dos Racionais é
sinal de uma "americanização" no modo como
os brasileiros passaram a pensar suas relações raciais.
Eis o Brasil pós-Casa-Grande-e-Senzala. Eis a voz não-cordial
da periferia do Brasil.
Em outro rap, os Racionais e sua legião de fãs cantam:
"Periferia é
periferia (em qualquer parte)". Faz sentido. Mas a comparação
entre o lugar que o rap (cantado em português) e a "americanização"
ocupam na periferia de Moçambique e do Brasil mostra que
o mesmo estilo musical pode fazer sentidos e ter consequências
político-culturais completamente diferentes devido a contextos
irremediavelmente locais. Ainda bem que assim é: se a globalização
nos empurra para uma inevitável periferia, que esse lugar
seja o mais heterogêneo e complexo possível. Só
assim estaremos disponíveis para surpresas, transformações
e novas músicas que combatam tudo aquilo que nos torna, muitas
vezes com muito orgulho, periféricos.
Leia mais: A
circulação da brincadeira
|
|