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De
Varnhagen a FHC, intérpretes do Brasil sempre quiseram mostrar
o que se pode esperar do país
(5/12/1999)
O
afeto de cada um
LUIZ COSTA LIMA
Dois
ingredientes se alternam nas obras de síntese: a apreensão
do caráter sistemático que atravessa as obras examinadas
ou a divulgação de sua temática. Com frequência,
domina o caráter de divulgação. Não
é o caso de "As Identidades Brasileiras", do historiador
baiano José Carlos Reis (Fundação Getúlio
Vargas Editora, 1999). Seu objeto é formado pela análise
de algumas das obras que, entre 1854-57 (quando Varnhagen publica
os cinco volumes de "A História Geral do Brasil")
e 1975, data do ensaio "Notas sobre o Estado Atual dos Estudos
sobre a Dependência", de Fernando Henrique Cardoso, consideraram
a especificidade histórico-social da formação
brasileira.
Uma questão primeira se levanta: o termo "identidades"
é cabível? Se o for, qualquer análise macroscópica
de um processo de formação social equivaleria a um
estudo de identidade. Mas, em vez de análise de processos,
o que diferencia um estudo de identidade não é precisamente
a determinação de uma constância, de uma marca
ou complexo nacional, que confunde ou tende a confundir identidade
com essência? Se a distinção for legítima,
alguns dos capítulos haveriam de ser subtraídos.
No conjunto, oito autores são considerados: Varnhagen, Capistrano
de Abreu, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Nelson Werneck
Sodré, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Fernando Henrique
Cardoso. A obra tem um caráter de sistematização,
porque nela sempre volta a questão: que se espera de um país
submetido ao processo de formação social que os autores
lhe conferem? É óbvio que esse processo é relacionado
ao próprio equacionamento proposto por cada autor; sendo
cada um deles condicionado por sua própria situação
temporal. Assim, para Varnhagen, quando a independência apenas
se consolidava, o problema consistia em afirmar a unidade nacional,
tendo por sujeitos "o homem branco e o Estado imperial".
Problema tanto mais agudo porque "a colônia tinha legado
uma sociedade heterogênea, incompatível social e etnicamente".
Em um momento alto de seu livro, Reis demonstra a repulsa que Varnhagen
manifestava quanto à escravidão, menos por ser escravidão
do que por envolver a vinda da raça negra. Nosso inconfessado
racismo já se manifestava em nosso primeiro historiador sistemático.
A identidade nacional haveria, pois, de supor a permanência
das "elites brancas que fizeram a independência",
sob a égide da monarquia. Portanto, antes mesmo que o evolucionismo
se difundisse entre nós, a escrita da história brasileira
já continha um traço racista. A questão sistemática
principia, pois, com o destaque de um certo grupo como agente da
identidade nacional.
Mesmo por acentuar esse traço, Reis passa de Varnhagen diretamente
a G. Freyre, ao qual dedica o capítulo mais extenso de sua
obra. Agora, naqueles anos de 1930, ante a crise da oligarquia,
Freyre tranquilizava seu leitor quanto às próprias
possibilidades do país: a miscigenação, sobretudo
com o negro, que criara, no fim do 19, a imagem de um futuro sombrio,
passa a encontrar uma resposta positiva.
O escravo, pela maneira como o senhor o tratara, nos legara uma
meiguice de trato e à sociedade uma plasticidade elogiável.
A meiga plasticidade da "democracia racial". Se, como
Varnhagen, Freyre é favorável à manutenção
do legado português, afasta-se portanto do historiador imperial
pelo louvor do homem moreno.
(Aqui não cabe, embora bem o faça Reis, acentuar que
o afastamento do fator étnico em Freyre está longe
de ser unívoco, como ele, em seus prefácios, apregoava.)
Em suma, em "Casa Grande" a "plasticidade" lusa,
fonte de nossa "democracia racial", justificava a permanência
do legado colonial. Como bem diz Reis, com Freyre "o Brasil
se densifica para trás".
Se seguimos o autor em falar depois de Capistrano, não deixamos
de alertar que, por esse deslocamento, prejudica-se a apreciação
do historiador cearense. De qualquer modo, fica claro que, neste,
a "identidade" brasileira estabelece-se a partir doutra
variável: o historiador cearense afasta-se da casa grande
litorânea para ressaltar a conquista do sertão. Essa
mudança contudo não afeta outra constante: a preocupação
com o futuro do país. Se, em Varnhagen, o futuro dependia
da manutenção do regime monárquico que, poucas
décadas depois da edição da "História
Geral", sucumbiria; se, em Freyre, o otimismo dependia da preservação
da lição do passado; em Capistrano, o exame do desbravamento
do país concluía com uma visão pessimista:
a "verdadeira independência econômico-social-mental"
não se cumprira.
Destacá-la tem aqui a função de alertar como
o otimismo ou o pessimismo quanto ao país acompanha as diversas
interpretações propostas. Para seus intérpretes,
o Brasil sempre foi um objeto de afeto. Sendo impossível
detalhar as interpretações consideradas, apenas se
acentue: o conservadorismo otimista de Freyre encontrará
direção diversa no "Raízes do Brasil",
de Sergio Buarque.
Já não mais caberá a simples alternativa, pessimismo
ou otimismo.
Escrevendo no mesmo momento da crise das oligarquias, Sergio Buarque
adensa para frente. O futuro do país dependia do Estado que
se formasse a partir do destaque dos centros urbanos, da industrialização
apenas nascente, da capacidade, em suma, que tivessem os agentes
políticos em implantar, contra o "homem cordial"
-aquele que, guiado por suas afeições, não
distingue o público do privado e que, então, faz da
máquina do Estado o prolongamento de sua propriedade e o
dirige como coisa própria -, o tempo da racionalidade. Dizê-lo
é implicitamente chamar a atenção para o weberianismo
de Sergio Buarque.
(Tem razão o autor em acentuar a pouca importância
de se determinar se foi Sergio Buarque o primeiro, entre nós,
a falar de Weber; basta saber que foi o primeiro a efetivamente
fecundá-lo.
Mesmo por isso, entretanto, dado o sentido amplo que o autor concede
a "identidades", caberia perguntar por que não
incluiu um capítulo sobre "Os Donos do Poder",
de Raymundo Faoro.)
Nos quatro capítulos restantes, a questão obsessiva
que se pode esperar do país receberá outra tematização:
o culturalismo de Sergio Buarque cederá ao marxismo de diversos
matizes dos autores então considerados. Se em Werneck Sodré
o otimismo se liga à suposição de que o país
está pronto para o salto socialista, se, no Caio Prado de
"A Revolução Brasileira" (1966), o otimismo
se transmuda em crítica agressiva contra a rigidez do marxismo
oficial, que provocara a conduta do PC quanto à política
de João Goulart e a menosprezar a reação que
afinal se impôs quase sem resistência, crê-se,
entretanto, ainda possível manter-se o otimismo.
Nos dois últimos autores tratados, F. Fernandes e F.H. Cardoso,
a análise da dependência quanto ao capitalismo internacional
muda o teor da resposta. À medida mesmo que Fernandes denunciava
o economicismo das análises marxistas precedentes, compreendia
os limites da burguesia nacional. Esta restringe sua modernização
à esfera econômica; nas demais, apenas faz um discurso
farsesco e decorativo. Já em F.H. Cardoso, surpreendentemente,
esse reconhecimento da dependência não prejudica o
otimismo. Daí a comparação que Reis faz dele
com Freyre: assim como este tomara a miscigenação
como fonte de otimismo, assim Cardoso separa a "dependência
estrutural" da subordinação colonialista.
A dependência, inevitável -"a realidade latino-americana
é a da dependência capitalista"-, não equivaleria
à permanência da colonização. É
o caso de perguntar: era o sociólogo que falava ou a teoria
sociológica já servia de trampolim para o homem político?
A consideração da alternativa nos lembra o início
do "Que País É Este?" (Revan, 1999), do
ex-ministro João Sayad: "Não temos um projeto
para o país, deixamos de ousar, chegamos sem idéias
novas". Terá sido esse o preço a pagar pela dependência
sem subordinação?
Leia mais: A
ficção mistificante
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