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A ficção mistificante
(7/11/1999)
LUIZ COSTA LIMA
Em
"As Iniciais" (Companhia das Letras, 1999), Bernardo Carvalho
aprofunda o clima indagativo que singularizava seu livro anterior,
"Teatro" (1998). De sua singularidade resulta o que o
crítico português Eduardo Prado Coelho chamou de fascínio
"insidiosamente perverso". Já seu aprofundamento
corre por conta do que liga os dois romances, com a vantagem presumível
do último. Tanto em "Teatro" como em "As Iniciais",
é evidente o contraste entre duas condições
nacionais: a ambiência de uma grande potência e um "outro
lado" -em "Teatro", um país vizinho e miserável,
em "As Iniciais", um país emergente, à beira
de ser tragado por uma catástrofe financeira mundial.
Mas a substituição de um miserável vizinho
por um ameaçado distante nada diz do alegado aprofundamento.
Ele dependerá de a caracterização seguinte
ser capaz de apontar para correção do que ainda parecia
prejudicar o livro anterior: o fato de que nele nenhum segmento
deixava de se encaixar e então fazer pleno sentido. Correção,
pois, da excessiva simetria.
"As Iniciais" já se encontra bem avançado
quando o narrador escuta uma voz esganiçada que anuncia a
tese: a vida em geral é o câncer do universo. E seu
corolário: o capitalismo é o câncer de si mesmo.
Ao aproximar-se, o narrador compreende que é um ator, ensaiando
um esquete. Logo é ele exposto para os convidados ao jantar
que os reunia e recebido "às gargalhadas". O ator,
ademais, já fora encontrado pelo narrador: ainda que secundário,
já estivera na primeira parte do relato. O reconhecimento
é o primeiro elo que une as partes do relato, apesar da distância
geográfica que as separa.
A primeira se passara em lugar antípoda. Nela, o narrador,
então correspondente de um jornal -por suposto, do lado de
cá-, começara seu relato por informar ao jornal que
saía de férias. Nada de palpitante havia a anunciar.
Era agosto e todos saíam da cidade. Nada de novo se acrescentara
desde o anúncio pelo presidente que o país iria se
juntar aos aliados e entrar em guerra. A guerra estourava bombas
"no outro lado do mundo, no deserto".
Ali, de onde o correspondente falava, nada sucedia. O correspondente
dirige-se pois para o interior da potência em guerra. Mais
precisamente, para um mosteiro restaurado e convertido em "centro
cultural".
Fora convidado com outros: artistas, herdeiros, administradores
de grandes fortunas, seus amantes e parasitas. O local situava-se
numa ilha do tipo da "isla al mediodía", de Cortázar,
isto é, de ilha pertencente ao tempo que arruinara seu caráter
tópico de "longe da multidão enlouquecida".
Os que ali se reúnem são referidos apenas por suas
iniciais.
Sobre o grupo em férias na ilha, como em todo o relato, paira
um clima detetivesco. As atitudes das personagens criam suspeitas,
quer de sedução, quer de embuste, quer de crimes talvez
cometidos, quer de identidade. As suspeitas criam versões
contraditórias -que, no entanto, ao contrário do gênero
detetivesco, não se esclarecem. O método de Georges
Simenon e Agatha Christie converte-se noutra coisa. Menos em história
emocionante do que em estímulo para a reflexão.
A caracterização ganha em rapidez se se concentrar
na figura que centraliza os convidados. Era um ex-jornalista, que
conseguira a cessão do antigo mosteiro e se dedica a escrever
um interminável diário. O escritor está "contaminado",
como alguns de seus parceiros. Em breve, ele próprio morrerá.
Há, portanto, duas guerras simultâneas: uma, embora
declarada, não incomoda aos deste lado; a outra, só
eufemisticamente declarada, devasta suas vítimas. Esses elementos
formam a parcela sócio-bio-política dos
parâmetros espaço-temporais do romance.
Embora a morte esteja à espreita de todos, todos parecem
ativos no desempenho de seus papéis. Estes começam
a se desenhar pela força desempenhada pela imitação.
O próprio narrador se declara imitador do autor do diário
infinito. Mas de que tratava o diário? De fatos? Não.
Sem pudor, o diário misturava vida e ficção.
"O quanto seus romances tinham de autobiográficos, também
os diários tinham de ficção". Eis pois
a segunda parcela dos parâmetros do romance: a partir do exemplo
do centro do "mosteiro", vida e ficção se
mostram confundidas, a ficção é mistificada.
Essa mistificação não é um mero apêndice
do enredo, mas parte essencial da estrutura. Três traços
o mostram: (a) em certa cena, o escritor memorialista veste-se com
esmero, ilumina a igreja e grava um vídeo que, embora esfumaçado,
é vendido à TV.
A "militância da mistificação de si mesmo"
faz parte do mecanismo da "indústria cultural";
(b) a voracidade com que todos se dispõem a entrar no processo
mistificatório, "como se só pudessem ser reais
no texto"; (c) a denúncia por um dos participantes de
que a mistificação dava ensejo a uma nova religião:
a criatura substituía o Criador. Curiosa sociedade em que
a falta de nomes se põe a serviço da mais extrema
individualidade.
Embora tenha se expressado de modo bastante polido, o denunciante
é entendido pelo mistificador. Segundo uma das interpretações
que passa a circular, o escritor mistificador é responsável
pelo desaparecimento daquele. Encerra-se a primeira parte. Mas a
tal ponto os dois lados do mundo estão unificados que a passagem
para o lado oposto não muda as regras da equação.
O fato de tratar-se de país em véspera de catástrofe
financeira não impede que retornem algumas das personagens
-desde logo, o narrador, o ator referido e a figura controversa
cuja identidade não se descobre- e que permaneça o
mesmo clima mistificatório.
Apenas este agora não abrange só a arte. Tendo por
base a vida, a mistificação consiste em se dar a mostrar
e em se pôr à venda.
Para isso contribui o próprio fato de que as versões
propaladas sobre esta ou aquela personagem conflitem entre si e
não se resolvam.
É por esse caminho que o autor ultrapassa o que chamara a
excessiva simetrização, ainda prejudicial ao "Teatro".
Agora, o encaixe dos detalhes é apenas aparente. Em troca,
torna-se mais aguda a afirmação da ficção
mistificante, da individualidade que, aparentando se desprender
do religioso, faz de si o centro de uma religiosidade amorfa, anômica,
em escala industrial, ela mesma
alimentadora e alimentada pela indústria da cultura.
Não é importante averiguar ou, de qualquer modo, seria
impossível saber se o autor reconheceu o problema. Parece
entretanto sintomático um episódio em que o escritor
memorialista, autor de ficção mistificante, cultor
da religião do eu, desempenha papel primordial. Ainda quando
jornalista, fora encarregado de entrevistar um mágico que
perdera sua fama ao errar na execução de um de seus
truques favoritos. A reportagem fracassara e, despedido da revista
para a qual trabalhara, decidira tornar-se escritor.
A questão sobre a qual tratam a personagem que o recorda
e o narrador é se o repórter transmitira de fato a
explicação do mágico ou preferira guardá-la
para si. Observa então a personagem que relata o episódio:
a "verdadeira mágica" só pode "surgir
das falhas, dos erros justamente, e nunca das fórmulas".
Ora, o narrador se apresentava como discípulo do escritor
agora morto. Em que, pois, consistira o "erro" de "As
Iniciais"? Diria: em fazer do romance, normalmente tido como
uma espécie de divertimento, uma reflexão ficcional
sobre o estado do mundo, do mundo da ficção em particular,
e do mundo globalizado; dos vírus, ameaças, mistificações
e catástrofes que particularizam um e outro. Contra a mistura
vida e ficção, em que cada uma se justifica pela outra.
Contra a ficção mistificante, a ficção
como problematização da vida.
Luiz
Costa Lima é ensaísta, crítico e professor
da Uerj e da PUC-RJ, autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34),
entre outros. A partir de hoje, ele passa a escrever mensalmente
na seção "Brasil 500 d.C.".
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