Negatividade e suspeita

(9/4/2000)

LUIZ COSTA LIMA

Desde Baudelaire, a poesia moderna mergulhou no que se chamou a "tradição da negatividade". O livro mais recente de Sebastião Uchoa Leite, "A Espreita" (Ed. Perspectiva, 96 págs., R$ 13,00), dela não se afasta, mas a radicaliza. A tal ponto isso sucede que a ironia não poupa nem sequer alguns dos mestres dessa tradição e do próprio poeta, Mallarmé e João Cabral de Melo Neto. Mas a descrição que fazemos é parcial. Se, ao contrário, ela contivesse toda a verdade do livro, desse se poderia dizer que põe em prática a frase de que Adorno depois se arrependera: como fazer poesia depois de Auschwitz? O leitor, de sua parte, poderia torcer o nariz: por mais que saibamos o que Auschwitz significou, por que a experiência concentracionária impediria a voz poética? Sua hipotética pergunta não é descabida, e assinalá-la não é aqui arbitrário. Não o é porque, como logo veremos, "A Espreita" tanto leva ao extremo o processo da poesia como não confunde esse processo com sua condenação. É verdade que esse fazer que rompe com o poético e do qual irrompe o poético não deixará de horrorizar os "poetas". E isso ao ponto em que não recuo de incluir uma minifábula. Houve um tempo, não tão recuado, em que os pais mais letrados proibiam certos livros a seus filhos. Ficavam no canto dos livros imorais. Imagine-se que um desses pais de outrora houvesse sobrevivido e ouvisse de um de seus filhos menores: "Pai, Joãozinho está lendo "A Espreita!'". No duro, a acusação seria inverossímil. Nenhum daqueles pais teria adquirido "A Espreita" e o pretenso Joãozinho, se denunciado, seria por ver, tarde da noite, certo programa de TV ou ligar seguidamente para certo telefone.

Transtorno inesperado
Mas a inverossimilhança não incomoda a função da fábula: para os apegados à tradição poética, mesmo a uma em plena força como a mallarmeana, "A Espreita" terá algo de imoral. E, no entanto, os escandalizados andaram depressa demais. Algo de imprevisto sucede no percurso do último livro de Uchoa Leite que escapa da pura negatividade. Dito de maneira mais explícita: a condenação da voz lírica, o processo encenado contra a exaltação do poeta e o enobrecimento por ele concedido à linguagem desligada dos objetos -"l'absente de tous bouquets"- sendo radicalizados, encontram um inesperado transtorno. Ler "A Espreita" supõe, por conseguinte, atender a dois registros: a radicalização da negatividade e o que, de dentro dela, insinua uma reconfiguração; uma reconfiguração do poético. Esses registros -mais exatamente, esses dois timbres- são entre si tão discordes que, para não entrarem em explícito choque, precisam de algum elo. É ele formado pela ironia inclusiva, que, ultrapassando as fronteiras desarmônicas, as articula. A ironia: sêmen destrutor-procriador. Procuremos captar o modo de cada timbre, acentuar sua discrepância, bem como as direções contrárias, contidas, muitas vezes, dentro do mesmo poema.

Terceira margem
Assim já aparece no poema de abertura, "Eros Cruel". "O que/ espreita nas trevas", perguntam os versos iniciais. O poema relê a cena bíblica da degola de Holofernes por Judith. Tanto na versão original como aqui, o desejo erótico leva à morte de quem o contrariara. Mas há uma diferença essencial. No texto clássico, a morte é o desfecho do que o eros vingativo causara. Já o final do poema insinua algo diverso: "Híbris êxtase/ Da morte crua". Em vez de estar do outro lado de onde eros se encontra, a "morte crua" se funde com ela, no excesso extásico. Em vez de constituírem margens paralelas e opostas, eros e morte insinuam seu encontro em uma "terceira margem". Não é que nesta navegue o morto, mas sim Judith. Isto é, no início da travessia radicalizadora da negatividade, o poema não se contenta em separar as margens da vida e da morte. A vida (eros) excede-se em morte, já não se identificando com seu oposto, dela causador.

Radicalização do negativo
Mas como pode ser isso? É preciso explicar melhor. A terceira margem não é inteligível senão no interior de um processo: o processo do sujeito, mais explicitamente, do sujeito poético. Pois o processo da voz lírica, levado a cabo pela busca de prosificar o poema, além de torcer o pescoço do cisne metafórico (dignificante, sublimante etc.), é o processo do sujeito. Dirá o leitor -não importa que seja apenas um dos dez ou cinco com que sonhava o finado Brás Cubas: "Ah, a morte do homem!". Sim e não. O sim corresponde à radicalização do negativo; o não, a um inominado que se insinua. Tome-se o poema "A Agulha". Em vez de termos um agente e um objeto, que se representa no espírito daquele, temos uma fusão de agente e objeto, em que esse se mostra como continente doutro objeto: "Uma agulha mais fina". Do ponto de vista do sujeito, a pressentida agulha mais fina se compara à vida que se esvai. Mas, do ponto de vista da agulha, há em seu interior apenas outra, que o sujeito só entende por analogia (metáfora). Parece então legítimo dizer: a crítica da metáfora se desdobra, assume outro timbre, que se declara na insinuação do que não vê o sujeito. Ou que só consegue ver por analogia com o que pressente -a vida que se esvai.

Uma forma de não ver
O ver do sujeito é, por conseguinte, uma forma de não ver, o que, entretanto, não deixa de estar. Pois o que o sujeito recusa -"Recusa o não-ver" ("O que se nega")- não nega a evidência da "parede", conquanto "reclusa", sem perceber -e "O que se nega", não o percebe!- que deixara de notar outros modos de ser -o da agulha mais fina, por exemplo. Pois o não-sentido do mundo, que "A Espreita" reafirma, não faz com que o real se confunda com que o resta, depois da recusa do "não-ver"; não impede, por exemplo, que o real deslize em "vértice de sombra" ("Duas sombras reflexas"); forma de ver que não se via. Já não centrado em si, mas nem por isso inexistente -dessacralizado, despersonalizado, mas não morto nem inexistente, como se tivesse sido tão-só uma fábula que o pensamento moderno desmistificou-, o sujeito se vê a si próprio e não se reconhece, ao deparar-se "projetado no espaço", como no belíssimo "A Luz na Sombra". Dessacralizado, tal sujeito nem se mitifica -o seu olho, em vez de abarcador e afirmante, é apenas "outro espelho pétreo"- nem abstrai o espaço particular e miserável dos trópicos em que habita:
"Sob as tendas de plástico sujo
Não há azuis
Nem mallarmaicos"
(...)
"Vêem só os banhos de lata
Corações de alumínio
Plastificados"
("Os Passantes da Rua Paissandu")
Não se poderia dizer melhor do que já disse João Alexandre Barbosa, em sua introdução:
"Não é um poeta à espreita, mas uma poesia de espreita". Poeta de espreita: aquele que não só despoetiza e desenobrece o sujeito, então individualista, senão que suspeita do que mostra. Nessa "poética randômica" ("Outra Visão do Paraíso"), o poeta desconfia que as coisas se resumam àquelas cujo não-sentido reitera. Sua suspeita é a de que haja outros planos de que, enquanto sujeito, não se dá conta. Daí que a ironia, inseparável de Uchoa Leite, não impeça o leitor de pensar, a propósito de passagem de "Outra Visão do Paraíso", noutro poeta, dele tão distinto, Jorge Guillén. De um Guillén, contudo, que não poderia haver escrito o que lembra sua visão extasiada: "Submergir/ Nas águas do nada/ Ver a subluz/ No solo/ Inspirar/ Expirar/ O ar/ Insólido/ Liquefeito/ Em-si". Ou o retorno da metáfora, embora "metálica", de "Nem as Luzes".

Sabor amargo
Que a espreita se introduza na negatividade e suspeite de outros planos com que o sujeito, mesmo o da negatividade, não atinava não significa a introdução de alguma nota otimista, afinal tranquilizadora. Os novos planos suspeitados são não psíquicos, porém bem materiais; novas formas de amargo no sabor das coisas ("Odores Odiosos", 1 e 2). Não tiremos do leitor o prazer de desdobrar o que apenas esquematizamos. Não cancelemos porém uma última anotação: como se explicaria que, dentro da radicalização do negativo, se meta algo diverso? Diremos: por coerência com a própria negatividade. Pois declarar que o mundo é um maciço não-sentido ou afirmar que a poesia hoje há de ser uma antipoesia é ainda manter a centralidade do sujeito. Daí que o gesto nietzschiano de denúncia das verdades nobres seja ele mesmo ironizado, no único exemplo que damos de "Antídoto", conjunto de poemas ainda integrado a "A Espreita":
"Quem vive fere
Pensando sopra
O vírus do vazio
Eu mordo
Logo posso"
("Pensar")
O cogito é mordido, enquanto se ironiza aquele que morde.


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