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Robert
Slenes
Para
professor da Unicamp, ao trauma da escravidão sucedeu-se o da sociedade
de classes, que criou novas formas de discriminação dos descendentes
dos escravos
(17/4/2000)
Negros
usaram família contra escravidão, diz Robert Slenes
Nome:
Robert W. Slenes
Especialidade:
demografia da escravidão no século 19
Cargo: professor do Departamento de História
da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
Textos: "Na Senzala, uma Flor-Esperanças
e Recordações na Formação da Família
Escrava" (Nova Fronteira, 1999), "Senhores e Subalternos
no Oeste Paulista" (in "História da Vida
Privada", Companhia das Letras, 1997). Colaborou na elaboração
de "Cafundó, a África no Brasil" (de
Carlos Vogt e Peter Fry, ed. da Unicamp/Companhia das Letras,
1996)
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HAROLDO
CERAVOLO SEREZA
da Reportagem Local
Professor da Universidade Estadual de Campinas, o norte-americano
radicado no Brasil Robert W. Slenes fez parte de uma geração que
se ocupou do problema da família escrava. Suas pesquisas em arquivos
da Igreja Católica e da Justiça do interior de São Paulo ajudaram
a reavaliar a suposta licenciosidade sexual dos negros cativos,
visão que unia intelectuais como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr.
e Florestan Fernandes. No ano passado, o livro "Na Senzala, uma
Flor" foi publicado. Incluído por dois historiadores ouvidos pelo
Mais! (2/4) como fundamental para o entendimento do Brasil Império,
defende que os cativos usaram suas organizações familiares para
obter concessões dos fazendeiros. Estes, por sua vez, incentivavam
a formação de famílias para evitar rebeliões. Leia trechos da entrevista
de Slenes, por e-mail, à Folha.
Folha - O alto número de casamentos entre escravos é um dos
fundamentos de "Na Senzala, uma Flor", em que o sr. defende que
eles não eram tão promíscuos como costumavam ser descritos. O sr.
não estaria idealizando esses casamentos?
Robert W. Slenes - A bibliografia "clássica" sobre a família
escrava no Brasil enfatiza o esforço por parte dos fazendeiros,
principalmente no Oeste paulista, de tolher e solapar "todas as
formas de união ou de solidariedade dos escravos". A frase é de
Florestan Fernandes, em "A Integração do Negro na Sociedade de Classes".
O resultado teria sido uma anomia extrema, uma absoluta falta de
nexos e normas sociais. "Perdidos uns para os outros", os escravos
não teriam desempenhado papel político relevante na "revolução burguesa",
processo que incluía a abolição da escravatura. Nesse contexto,
a descoberta de que uma proporção grande de escravos nas regiões
de café e açúcar era casada ou viúva causa um certo impacto. Impressiona,
também, o fato de que, nas propriedades com mais de dez cativos,
esses casamentos eram bastante estáveis. É claro que temos de ir
além desses dados, combinando-os com relatos, processos, inventários
"post-mortem" e pesquisas antropológicas na África Central, fontes
que permitem recuperar esperanças e recordações que levaram os cativos
a valorizar o casamento e o parentesco.
Folha - Por que os pesquisadores viam um escravo tão marcado
pela promiscuidade sexual?
Slenes - Em parte, porque conheciam os estudos sobre a família
escrava nos EUA, também influenciados por noções de anomia e patologia
social. Mais amplamente, as ciências humanas na época (1930-1965)
entendiam as culturas como sistemas normativos completamente integrados
a suas bases sociais. Portanto, a separação de um indivíduo de sua
cultura e sociedade de origem necessariamente o tornava candidato
forte à anomia. Finalmente, os estudiosos da família escrava nesse
período privilegiavam como fonte relatos de observadores brancos,
fazendo uma leitura acrítica deles.
Folha - O sr. defende que o escravo organizava famílias
para resistir aos proprietários. Isso seria tão importante quanto
as revoltas?
Slenes - As revoltas só podem ser entendidas à luz de uma
história social da cultura. Como mostrou o historiador inglês E.P.
Thompson, os movimentos populares não são "reativos", movidos simplesmente
pela fome ou pela opressão. Surgem a partir de uma reflexão por
parte de seus integrantes sobre sua própria experiência; isso é,
são, em primeira instância, movimentos de interpretação. Daí a importância
de estudos sobre religião, família e questões relacionadas para
entender o "caldo de cultura" de onde nascem as revoltas.
Folha - Como a família escrava ajuda a desestabilizar o
sistema escravista?
Slenes - A família cativa emerge de um processo de conflito
entre escravo e senhor. O senhor é forçado a ceder um certo espaço
para os escravos formarem famílias, encarando isso, porém, como
parte de uma política de desmonte de revoltas. A política funciona
até certo ponto, pois, ao dar ao escravo algo a perder, ela o torna
mais vulnerável, transforma o cativo em refém. A médio e longo prazo,
contudo, o espaço acaba sendo altamente subversivo, pois é usado
pelos escravos como lugar de criação e transmissão de uma identidade
própria, antagônica à dos senhores e forjada a partir da descoberta
de tradições africanas compartilhadas. Por isso resisto à idéia
de que a família escrava deva ser entendida agora como uma condição
estrutural do escravismo, como sustentam Manolo Florentino e José
Roberto Góes, invertendo o argumento de Florestan Fernandes.
Folha - Qual a herança da família escrava para a família
brasileira de hoje?
Slenes - Talvez a mesma da família escrava nos EUA para
a família negra norte-americana. Quando Alex Haley escreveu o romance
"Negras Raízes", a partir dos relatos orais de sua própria família,
imaginou que a história fosse excepcional. Ao longo do livro, seus
personagens se encontram com outros negros que estranham o fato
de eles saberem o nome de seus pais e avós. Logo em seguida à publicação
do livro, o historiador Herbert Gutman mostrou que a saga da família
de Haley era bastante típica. É importante para os negros de hoje
saberem que seus antepassados não foram vítimas passivas, submissas.
Por outro lado, não se pode mais argumentar que um "déficit cultural"
negro, centrado na família e criado na escravidão, seja uma causa
importante para a marginalização do ex-escravo e de seus descendentes.
A escravidão foi duríssima. Mesmo assim, os escravos emergiram do
cativeiro com um forte sentimento da importância de laços familiares.
Se não tiveram o mesmo sucesso que os imigrantes no pós-abolição,
isso se deveu à criação pela "sociedade de classes" de novos mecanismos
de exclusão.
Folha - Em 1988, correu o boato de que a Lei Áurea seria
revogada ao fazer cem anos. A sociedade brasileira ainda não está
livre do trauma da escravidão?
Slenes - Ao trauma da escravidão sucedeu-se o trauma da
nova sociedade de classes e finalmente o de um capitalismo selvagem
e altamente discriminatório. Em 1950, a desigualdade da distribuição
de renda no Brasil era grande, mas o país ainda não havia chegado
à situação extrema da África do Sul. Já na época em que foi derrubado
o regime do apartheid, o Brasil estava praticamente empatado com
a África do Sul como recordista em má distribuição de renda. Sabemos
a cor da maioria dos excluídos em ambos países.
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