Discípulo de Octavio
Paz
analisa herança política
(6/3/2000)
Nome:
Enrique Krauze
Idade:
53 Cargo: diretor da revista "Letras Libres"
e da editorial Clío
Especialidade: historiador da política
mexicana, autor de livros que refazem a trajetória
pessoal de personagens históricos para retratar
determinados períodos
Livros: "Siglo de Caudillos" (Tusquets,
1994), "Biografía del Poder" (Fondo
de Cultura Económica, 1987), entre outros
|
SYLVIA
COLOMBO
Editora interina de Especiais
A
política latino-americana encerra-se num paradigma
medieval, herdado do mundo ibérico, que explica
alguns itens da nossa cultura política, como o corporativismo
e o patrimonialismo. Assim pensa o historiador mexicano Enrique
Krauze, 53, para quem a comemoração dos 500
anos do Descobrimento do Brasil é data propícia
para a revisão crítica de seu passado comum
com o estante da América Latina.
O historiador dirige a revista Letras Libres,
novo nome da publicação Vuelta,
criada por Octavio Paz em 76 e por ele dirigida até
sua morte, em abril de 98.
Criticado pelos acadêmicos marxistas, Krauze afirma
que sua bandeira é a democracia liberal. Otimista,
acredita que a América Latina, neste fim de século,
segue um caminho político correto.
Krauze tem uma postura crítica em relação
ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), que
governa o México desde 1929 e que tentará, nas
eleições do dia 2 de julho, continuar à
frente da nação.
O historiador deu entrevista à Folha, de seu
escritório, na Cidade do México. Leia abaixo
os principais trechos da entrevista.
Folha - Suas obras tratam do poder político
da oligarquia no México, tema comum também a
outros países da América Latina. Qual é
o legado das fórmulas políticas do período
pós-independência para as sociedades atuais do
Brasil e do México?
Enrique Krauze - Os dois países tiveram no século
20 grandes períodos de prostração política.
O militarismo esteve mais presente no Brasil, mas a violência
revolucionária cobrou milhares de vidas do México.
Sempre achei notável que no Brasil tenha havido menos
movimentos guerrilheiros do que no restante da América
Latina.
Acredito que a fundação traumática dos
Estados hispano-americanos contrasta com a do Brasil, feita
por meio de um pacto com a metrópole portuguesa. Isso
facilitou a sua marcha histórica. Certa vez, Octavio
Paz me disse algo impressionante: O México não
se consolou nunca de não ter sido uma monarquia.
O Brasil não teve do que se consolar: nasceu como filho
legítimo de uma monarquia e sua passagem para a vida
republicana foi menos conflitiva. O México, por sua
vez, viveu mais de um século numa grande simulação:
a de ser uma monarquia fantasiada de república.
Folha - Pudemos assistir, na América Latina,
desde o fim da colonização, diversos ciclos
políticos comuns, como o do liberalismo, o das ditaduras
militares, o da redemocratização e, atualmente,
a busca pela adoção da social-democracia. Como
o sr. avalia esse processo?
Krauze - Sempre me surpreenderam os paralelismos da
história ibérica e latino-americana. A mesma
tensão entre monarquismo e liberalismo no século
19, a mesma alternância entre anarquia e ditadura no
século 20.
As ditaduras de Salazar (Portugal) e Franco (Espanha) romperam
a semelhança, ainda que a mesma concentração
de poder em apenas um homem, tirano ou caudilho, tenha ocorrido
também na maioria dos países latino-americanos.
Desde a metade do século 20, os países da América
Latina se parecem mais entre si e não com suas antigas
metrópoles. Prosperaram os clássicos paradigmas
latino-americanos: o estatismo, a economia fechada e protegida,
a ideologia terceiro-mundista, o marxismo acadêmico
e os movimentos guerrilheiros. Na última década,
deu-se entre nós um milagre tão importante quanto
a queda do Muro de Berlim: a adoção, com a exceção
vergonhosa de Cuba, da democracia. Esse voto continental pela
liberdade não havia ocorrido nunca em nossa história.
É esperançoso, ainda que a Venezuela e o Peru
sejam nuvens de populismo e caudilhismo.
Folha - O sr. acha que a cultura política herdada
de espanhóis e portugueses subsiste na América
Latina?
Krauze - Existe em nosso inconsciente político
coletivo um paradigma medieval do poder, proveniente dos neo-escolásticos
dos séculos 16 e 17. Isso explica muitos aspectos de
nossa vida política: o corporativismo, o patrimonialismo,
a corrupção e o que o pensador mexicano Gabriel
Zaid chamou de a propriedade privada dos postos públicos.
Tocqueville dizia que os costumes políticos são
mais importantes que as leis e instituições.
Tinha razão: esses costumes são sólidos
como montanhas. Representam uma bagagem cultural que nos preparou
mal para a democracia.
Porém os velhos paradigmas da nossa cultura política
vêm se desgastando, devido à força da
globalização. Mas nossa inexperiência
histórica na vida democrática nos faz vulneráveis.
Temos de criar e consolidar instituições e práticas
culturais democráticas para vencer determinações
culturais.
Folha - Como diretor de uma revista literária
e política, como o sr. analisa o papel político
exercido pelos escritores latino-americanos ontem e hoje?
Krauze - Em relação à primeira
metade do século, vejo uma semelhança com o
que se passou na Rússia czarista. A literatura teve
um papel político primordial na construção
das sociedades latino-americanas de hoje. Há entre
nós uma espécie de sacerdócio da cultura.
Os escritores são a voz da nossa consciência.
Os pensadores de nossos problemas históricos (Octavio
Paz e Gilberto Freyre, entre tantos outros) são os
inventores da nossa realidade, enquanto outros (romancistas
e poetas) são os descobridores de uma outra, mais profunda,
sobre nossa identidade cultural.
Leia mais:
Temos
uma dívida com a África, diz Katia Mattoso
|