Armelle Enders

Francesa faz elogio do “jeitinho”

(27/3/2000)

Nome: Armelle Enders

Idade: 36 Cargo: professora de história do século 19 e colonização européia na Universidade Paris 4 e conferencista de História do Brasil na Escola Prática de Altos Estudos de Paris
Especialidade: história do Brasil nos séculos 19 e 20 e colonização européia
Livros: "Histoire du Brésil - Questions au 20ème Siècle" ("História do Brasil - Questões ao Século 20", Complexe, Bélgica, 1977) e "Histoire du Rio de Janeiro" (Fayard, no prelo)

FÁTIMA GIGLIOTTI
de Paris

O famoso ‘jeitinho‘ brasileiroencontra justificativa na história política recente do Brasil. O convívio com um Estado instável e sem ‘tradição enraizada de prestação de serviços‘ fez com que a sociedade adquirisse ‘capacidade de mudança e criatividade‘ para suplantar as deficiências do Estado.
A opinião é da brasilianista francesa Armelle Enders, 36, que leciona história do século 19 e colonização européia na Universidade Paris 4 e é conferencista de História do Brasil na Escola Prática de Altos Estudos de Paris. Em maio, Enders lançará seu segundo livro sobre o Brasil (‘História do Rio de Janeiro‘, editora Fayard).
A historiadora diz que a colonização ‘singular‘ do Brasil ajuda a explicar aspectos da sua atual formação política e social. Leia abaixo trechos da entrevista que Enders concedeu à Folha, em sua casa, em Paris.

Folha - O que o Brasil herdou da metrópole européia?
Armelle Enders - Acho que o Brasil herdou quase tudo de Portugal. Na Independência do Brasil, a maior responsabilidade veio das cortes de Lisboa. As elites luso-brasileiras tinham mais afinidade com os portugueses do que com os índios e os escravos. Para a elite, não era possível reconhecer esses grupos como conterrâneos. Com a Independência, foi preciso inventar uma nação.

Folha - Em que se baseou esse processo de ‘invenção‘?
Enders - Havia mais solidariedade entre os grupos dominantes dos dois lados do Atlântico. É por isso que os termos colonização e descolonização, no Brasil, não tem nada a ver com os casos da África contemporânea, da Ásia, do novo imperialismo europeu do século 19.

Folha - É assim que os historiadores franceses -e europeus- avaliam a experiência colonial brasileira, atualmente?
Enders - Os acadêmicos franceses, e mesmo os europeus, não consideram o Brasil um país colonizado. Esse é uma palavra polêmica, porque a idéia de colonização costuma ser associada à de opressão. Assim, a colonização brasileira é, no mínimo, particular. Quando digo para os meus colegas que o Brasil se considera ex-colônia, é uma gargalhada geral.

Folha - Por quê?
Enders - A Independência do Brasil, por exemplo, é vista como a da África do Sul, uma coisa de brancos, uma colonização que, na verdade, chegou até o final porque foi um grupo de brancos que se separou da metrópole para defender seus interesses. As classes dominantes, no Brasil, não são vistas como vítimas, mas como vencedoras. Para o europeu, exemplos de colônia são a Argélia, a Índia, toda a África.


Folha - É isso que faz o Brasil conhecer ‘uma trajetória singular‘, como está num livro seu?
Enders - Único país lusófono da América, o Brasil teve uma Independência singular, sem libertador. Adotou a forma monárquica, a unidade territorial foi preservada. Portugal era um reino muito diferente da ‘federação‘ que era a Espanha. Portugal foi um dos Estados-nação mais antigos da Europa, e isso foi uma herança importante para o Brasil. Mas a centralização começou antes da Independência, com a transferência da corte para o Rio em 1808, um processo fascinante.

Folha - Por quê?
Enders - É uma inversão colonial: o Rio passou a ser a sede da monarquia. A corte não precisava ficar no exílio, mesmo antes da derrota final de Napoleão Bonaparte. Mas ficou -para construir um novo Império, porque o Brasil colônia era mais poderoso do que o Portugal metropolitano. Não conheço outro exemplo de colônia que vira metrópole.

Folha - Então a Independência teria sido antes de 1822?
Enders - A Independência foi um processo de emancipação final da época da colonização. Por isso, reforço a idéia de um processo, da chegada da corte à abdicação de d. Pedro 1º (1808 a 1831).

Folha - A América Latina, Brasil incluído, viveu ciclos parecidos: liberalismo, populismo, ditaduras militares, a recente tentativa de adotar a social-democracia. Há um destino comum para a América Latina?
Enders - Acho interessante essa pergunta, porque não acredito que há alguns anos um jornal brasileiro a faria. Pode-se dizer que a América Latina tem um destino comum, mas a concretização disso é um processo longo. Acho até que a construção do Mercosul foi rápida, pois a conversão do Brasil para a América Latina é recente.

Folha - O que o Brasil contemporâneo herdou da história do Brasil?
Enders - As pessoas no Brasil se acostumaram a contar com elas mesmas, criaram estratégias para sobreviver à instabilidade geral. Isso resulta numa vida muito difícil, mas também numa grande força. Impressiona-me a capacidade de mudança da sociedade brasileira, a criatividade, um jeitinho no sentido de sobreviver, porque as pessoas não podem contar com o Estado. É muito pouco provável, por exemplo, o governo francês dar calote na poupança ou no meu salário. Isso é produto da história.

Folha - Qual a grande força do brasileiro?
Enders - O brasileiro está acostumado a um Estado sempre à beira da falência, mas desenvolveu uma força individual admirável. Há muita miséria, mas as pessoas se viram para sobreviver. Ao contrário do que se fala, acho que o brasileiro tem uma capacidade de mobilização coletiva e um engajamento cívico muito forte.

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