A
revisão de Canudos
ROBERTO VENTURA
especial para a Folha
O centenário da morte de Antônio Conselheiro
e da destruição de Canudos traz um paradoxo.
Euclides da Cunha inseriu a guerra na memória coletiva,
ao apresentar, em "Os Sertões", a visão
de um país fraturado por mundos culturais conflitantes.
Historiadores e antropólogos se afastaram, porém,
nas últimas décadas da interpretação
de Euclides, criticado por sua avaliação negativa
do movimento religioso e da atuação de seu líder,
Antônio Conselheiro, que morreu em 22 de setembro de
1897, provavelmente em decorrência de um ferimento na
perna,
causado por estilhaços de bomba.
Euclides criou um retrato sombrio do Conselheiro como personagem
trágico, guiado por forças obscuras, que o levaram
à loucura e ao conflito com a Igreja e o governo.
Enfatizou o caráter sebastianista e messiânico
de Canudos, cujos habitantes acreditariam no retorno mágico
do rei português d. Sebastião, desaparecido no
século 16, que voltaria para derrotar as forças
da República e restaurar a monarquia.
Baseou-se nos poemas populares e nas profecias apocalípticas,
encontrados nas ruínas da cidade, que julgou refletirem
a pregação do Conselheiro. Explicou assim alguns
dos aspectos misteriosos da guerra, como a luta quase suicida
dos conselheiristas, ou a migração para Canudos
em pleno conflito.
Para o pesquisador baiano José Calasans, começou
a surgir a partir dos anos 50 um outro Canudos, diferente
daquele criado por Euclides. Esse Canudos não-euclidiano
se formou a partir da coleta dos testemunhos de sobreviventes
e da revisão dos documentos sobre a guerra. O escritor
paulista Ataliba Nogueira contribuiu para tal virada, ao divulgar,
em 1974, os escritos do líder da comunidade em "Antônio
Conselheiro e Canudos", que acaba de ser relançado
pela editora Atlas.
Os sermões de Antônio Vicente Mendes Maciel,
o Conselheiro, mostram um líder religioso muito diferente
do fanático místico retratado por Euclides.
Revelam um sertanejo letrado, cujas concepções
políticas e religiosas se vinculavam a um catolicismo
devocional, frequente entre os pregadores leigos do nordeste.
Seu profetismo, com o ideal de martírio e o desejo
de salvação, não continha, ao contrário
do que Euclides supôs, crenças sebastianistas
ou esperanças milenaristas na criação
do paraíso na Terra.
Antônio Conselheiro começou a pregar por volta
de 1870 pelo interior do Nordeste e a organizar mutirões
para a construção de igrejas e cemitérios.
Foi proibido de pronunciar sermões pela Igreja em 1882.
Seus conflitos com a ordem estabelecida se agravaram com a
proclamação da República. Conselheiro
se opunha ao novo regime, que fizera a separação
entre Estado e Igreja e introduzira o casamento civil.
Após tomar parte em rebelião contra a cobrança
de impostos, fixou-se com seus seguidores em 1893 na região
de Canudos, às margens do rio Vaza-Barris, no nordeste
da Bahia. Criou Belo Monte como refúgio sagrado contra
as secas da região e as leis seculares da República.
Baseada na agricultura de subsistência e na criação
de bodes para a produção de couros, a comunidade
teve um crescimento extraordinário e atingiu uma população
estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes, criando tensão
com os proprietários de terras.
O atraso na entrega de madeira, comprada em Juazeiro para
a construção de uma igreja, foi o estopim de
um conflito armado, que se estendeu por quase um ano, de 6
de novembro de 1896 a 5 de outubro de 1897. Quatro expedições
militares foram enviadas contra Canudos e 5.000 soldados morreram
nos combates.
Vitoriosas, as tropas da República se vingaram das
derrotas sofridas. Prisioneiros foram executados e mulheres
estupradas. As ruínas da cidade foram totalmente queimadas.
O Exército cumpria as determinações do
presidente Prudente de Morais, que declarara: "Em Canudos
não ficará pedra sobre pedra, para que não
mais possa se reproduzir aquela cidadela maldita".
Roberto Ventura é professor de teoria literária
na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das
Letras); prepara uma biografia de Euclides da Cunha.
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retrata guerra de 1897
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