O autor de "Os Sertões" fez de seu relato sobre Canudos uma teoria do Brasil e uma longa expiação de seu silêncio cúmplice

O remorso de Euclides

ROBERTO VENTURA
especial para a Folha

Duas forças militares enviadas a Canudos já haviam fracassado quando o coronel Moreira César foi nomeado comandante da terceira expedição. Herói da repressão à Revolução Federalista no sul do país, Moreira César morreu na madrugada de 4 de março de 1897, após o primeiro ataque à cidade. Foi uma derrota humilhante, em que 1.300 soldados abandonaram todo o armamento, e até o corpo do coronel, na fuga desordenada.

A notícia de novo fracasso do Exército provocou manifestações populares no Rio de Janeiro e em São Paulo, em que jornais monárquicos foram destruídos e um jornalista foi assassinado. A imprensa favorável ao governo explicava o desastre pelo apoio que o Conselheiro estaria recebendo dos monarquistas e até de países estrangeiros, com o objetivo de derrubar a República.

Euclides comentou a espantosa derrota da expedição Moreira César em "A nossa Vendéia", artigo no jornal "O Estado de S. Paulo", de 14 de março de 1897. Aproximava o conflito na Bahia à rebelião dos camponeses monarquistas e católicos a região da Vendéia, ocorrida a França em 1793, como reação à Revolução Francesa. E mostrava, a partir do paralelo, sua convicção da vitória do governo sobre os seguidores do Conselheiro: "A República sairá triunfante desta última prova".

Em Canudos
Enviado à frente de batalha como correspondente de "O Estado de S. Paulo", Euclides participou de agosto a outubro de 1897 da quarta e última expedição, formada por 8.000 homens. Tomou contato com uma cidade semidestruída pelos constantes bombardeios, com seus habitantes privados de água e comida.
Passeou, dentro da cidade, em 29 de setembro, como contou em artigo para o jornal: "Passeio perigosamente atraente, com os jagunços a dois passos apenas, nas casas contíguas".

Decepcionou-se com o aspecto daquela povoação estranha, cujas ruas eram substituídas por um labirinto de becos, com casas que se acumulavam em absoluta desordem.

Presenciou em Canudos pouco menos de três semanas de luta, de 16 de setembro até 3 de outubro, quando se retirou doente, dois dias antes do fim da guerra. Não assistiu ao massacre dos prisioneiros, à queda da cidade ou à descoberta do cadáver do Conselheiro e de seus manuscritos, cenas ausentes de suas reportagens.

O silêncio de Euclides sobre as atrocidades da guerra foi acompanhado por quase toda a imprensa. Os materiais enviados pelos correspondentes, sobretudo pelo telégrafo, eram submetidos à censura militar. Mas outros jornalistas, como Manoel Benício, do "Jornal do Comércio", do Rio, e Favila Nunes, da "Gazeta de Notícias", também do Rio, chegaram a mencionar atos de violência das tropas.

Euclides se sentiu tolhido para atacar o Exército. Era desde 1896 tenente reformado e fora nomeado adido ao Estado-maior para a cobertura da guerra. Acompanhou grande parte dos combates junto aos oficiais da comissão de engenharia e do quartel-general.

Suas reportagens se interromperam de forma súbita em 1º de outubro. Escreveu sobre as manhãs admiráveis em Canudos, com os raios de sol que iluminavam o círculo de montanhas, e relatou o violento ataque à cidade. Ao contemplar os feridos que se acumulavam no chão, gemendo e soluçando de dor, sentiu um profundo desapontamento: "Acreditei haver deixado muitas idéias, perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue...".
Abandonava ali muitos dos ideais republicanos que defendera na juventude como cadete na Escola Militar, da qual foi desligado por ato de protesto contra a monarquia, ou ainda como articulista da "Província de S. Paulo". Esses ideais ecoaram em seus artigos sobre a guerra, que terminavam com os brados patrióticos de "Viva a República" ou "A República é imortal".

"Os Sertões"

Euclides passou quatro anos após o fim da guerra preenchendo centenas de folhas de papel, para ordenar o caos e superar o vazio trazidos sob o impacto daquela região assustadora.

Escreveu grande parte de "Os Sertões" em São José do Rio
Pardo, no interior de São Paulo. Morou na cidade por três anos, de 1898 a 1901, para reconstruir a ponte metálica sobre o rio, que ruíra devido a uma enchente.

"Os Sertões" teve um impacto surpreendente desde o seu lançamento em dezembro de 1902. Foi um sucesso imediato de público e de crítica, com três edições em apenas três anos, ainda que seu assunto se encontrasse tão morto quanto as vítimas da intervenção militar. O próprio escritor reconhecia que a história do conflito tinha perdido toda a atualidade. Nenhum dos jornais que procurara, "O Estado de S. Paulo" e o "Jornal do Comércio", do Rio, mostrou interesse em publicar a obra. Acabou tendo que pagar parte dos custos da edição, que saiu pela editora Laemmert, do Rio de Janeiro.

O livro causou surpresa pelo cuidado estilístico e literário, que lhe permitiu superar o imediatismo do enfoque jornalístico. Narrou a guerra de forma literária, mostrando como a epopéia das forças republicanas degenerou em tragédia, drama sombrio em que não havia heróis. Construiu seu relato a partir de imagens marcadas pelo fatalismo trágico, em que a natureza dos sertões, com sua vegetação seca e contorcida, se converte em cenário que permite antever o martírio dos sertanejos.

Foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil, cuja história seria movida pela luta entre raças e culturas. Explicou a guerra como o choque entre dois processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja. O mestiço do sertão apresentaria vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de componentes africanos, que tornariam sua evolução mais estável: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte".

Recorreu a imagens tiradas da geologia para caracterizar o sertanejo, "rocha viva de nossa raça", base do homem brasileiro do futuro, que os soldados exterminavam. Comparava o homem do sertão, formado a partir da fusão de raças, ao granito, composto de diversos minerais. As imagens geológicas, frequentes no livro, se ligavam à sua atuação como engenheiro estadual em São Paulo, que fazia estudos de terreno para as obras sob sua supervisão.

Acreditava que a República precisava ser refundada. A guerra de Canudos tinha prolongado, para ele, a desordem criada pelo marechal Floriano, para combater outra desordem: a Revolta da Armada de 1893. Canudos seria o resultado da instabilidade dos primeiros anos de um sistema político, decretado de improviso por um golpe do Exército e copiado dos códigos europeus.

Atacava tanto o militarismo dos governos dos marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894), quanto o liberalismo artificial de uma Constituição que as elites civis violentavam por meio de fraudes eleitorais. Criticou o militarismo como a chaga no seio da República, mal de origem que a convertera em um regime pouco democrático, mesmo com o predomínio das correntes civilistas a partir do governo de Prudente de Morais (1894-1898), que ordenara a destruição de Canudos.

Sua revisão da República resultou de uma longa e sofrida reelaboração, em que deixava transparecer certa culpa ou remorso pelo silêncio cúmplice a que precisou se submeter. Tanto em "Os Sertões", como nos ensaios "A Esfinge" e "O Marechal de Ferro", em que criticou o autoritarismo do marechal Floriano, irrompe uma escrita represada, que só pôde ser traçada à distância, e depois de extintos os fatos e muito de seus personagens.

Reconheceu, em "Os Sertões", a omissão de sua cobertura de guerra, ao relatar fatos sobre os quais antes silenciara: a degola dos prisioneiros e o comércio de mulheres e crianças. Criticou ainda o confronto entre Canudos e a Vendéia, ao descartar a idéia de uma conspiração monárquica e mostrar que a rebelião era muito mais mística e religiosa do que propriamente política.
Com sua denúncia da guerra como crime, Euclides chocou e emocionou os leitores das cidades, que travavam contato com um sertão desconhecido e se compadeciam do destino cruel dos seguidores do Conselheiro. Vistos nas reportagens como inimigos da República, os sertanejos se converteram em rudes patrícios imolados no altar da pátria.

Roberto Ventura é professor de teoria literária na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras); prepara uma biografia de Euclides da Cunha.

Leia mais: Leia trechos de "Os Sertões"

 


Leia mais:

-A revisão de Canudos
-Filme retrata guerra de 1897
-O Bom Jesus do sertão
-Sermões numa caixa de madeira
-Cronologia
-A aurora de Belo Monte
-O sonho dos espaços sagrados
-O que ler
-Baionetas do fim do mundo
-Personagens
-O remorso de Euclides
-Leia trechos de "Os Sertões"
-Quem foi Euclides da Cunha
-Leia mais
-O olho do Exército
-Arqueologia na caatinga
-Templos em ruínas
-Depois da guerra