O fotógrafo expedicionário Flávio de Barros fez os únicos registros da rendição e destruição de Canudos e da vida das tropas

O olho do Exército

CÍCERO ANTONIO F. DE ALMEIDA
especial para a Folha

Em 3 de agosto de 1897, o ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, partia da capital federal com destino ao sertão baiano, palco das operações de guerra entre o Exército e os habitantes de Canudos, ou Belo Monte, como era chamada por Antônio Conselheiro e seus seguidores a cidadela erguida quatro anos antes, às margens do rio Vaza-Barris.

Sua presença no cenário das operações era fundamental para os planos do Exército, preocupado com os destinos que a luta tomava. Os reforços levados pelo ministro atendiam a um pedido do alto-comando das operações, que em julho solicitara o envio de 5.000 homens, já que contava àquela altura com apenas 2.600 soldados em condições de luta. Mesmo que assim não tenha entrado para a história, o deslocamento do ministro e dos batalhões que o acompanharam poderia ser considerada a quinta expedição militar contra Canudos.

A guerra era notícia diária dos principais jornais do país, que mantinham correspondentes na frente de batalha. Antônio Conselheiro era citado, inclusive, em periódicos da Europa e dos Estados Unidos, dada a dimensão dos conflitos, que havia transcendido o caráter regional e atingido o patamar de uma verdadeira guerra civil.

Visando à legitimação da ação militar contra os habitantes de Canudos, resolveu o Exército utilizar-se da fotografia, já num estágio desenvolvido, ainda que restrita a profissionais, e que "fixaria" definitivamente o ponto de vista do Estado nacional. Inspirado na capacidade discursiva da fotografia, o Exército resolveu incluí-la em seu esforço final de guerra. Coube ao fotógrafo expedicionário Flávio de Barros o papel de codificador das glórias do Exército.

A tentativa de construir um sistema de controle sobre as informações vindas de Canudos que engendrasse um clima favorável ao governo e ao Exército já havia sido iniciada com a determinação de que qualquer mensagem telegráfica que partisse de Monte Santo, base das operações, fosse lida previamente pelo comando das operações. Jornais da oposição monarquista haviam sido empastelados, como "A Gazeta da Tarde", cujo proprietário, José Gentil de Castro, foi perseguido e assassinado. Quando o general Artur Oscar, comandante da quarta expedição, recebeu críticas do correspondente do "Jornal do Commercio" (que passava seus telegramas de Queimadas, a mais de 100 km de Canudos, para escapar da censura), foi imediatamente providenciada a leitura na Câmara e no Senado de uma mensagem de defesa escrita pelo próprio militar, em meio a uma grande mobilização da imprensa.

Devemos levar em conta que a fotografia era um sofisticado e moderno instrumento de persuasão. Após o seu desenvolvimento na segunda metade do século 19, acreditava-se que a humanidade estava diante de uma invenção que seria capaz de registrar a realidade tal como era, graças à sua natureza química de fixação de imagens num suporte sensível à luz.

Difundida a sua credibilidade como prova definitiva dos fatos, a fotografia passou a representar a própria verdade. No entanto, como qualquer outra forma de registro, a fotografia também é resultado da construção subjetiva de uma determinada realidade. Nenhuma fonte documental equivale à verdade histórica (como queriam os positivistas); a realidade pretensamente registrada na fotografia é também uma invenção.

A curiosidade em torno do tema Canudos era aguçada pelas precárias ou, por outro lado, não-confiáveis fontes disponíveis. Preocupado com "a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro", Machado de Assis em sua coluna em "A Semana", de 31 de janeiro de 1897, alertava: "Um repórter paciente e sagaz, meio fotógrafo ou desenhista, para trazer as feições do Conselheiro e dos principais subchefes, podia ir ao centro da seita nova e colher a verdade inteira sobre ela". Era um vaticínio que logo se cumpriria com "Os Sertões" e as fotografias de Flávio de Barros.

As pesquisas realizadas sobre as imagens de Flávio de Barros mostram que o fotógrafo acompanhou as tropas auxiliares sob o comando do general Carlos Eugênio de Andrade Guimarães, futuro comandante da 2ª coluna, da capital da Bahia, de onde partiu no dia 30 de agosto, até Canudos. O roteiro incluiu Queimadas, onde permaneceu entre 1º e 3 de setembro, Cansanção (entre os dias 4 e 7), Monte Santo, base das operações militares (entre os dias 8 e 25), e, finalmente, Canudos, onde chegou no dia 26, permanecendo até o final dos combates. Seus originais se encontram hoje preservados no Arquivo Histórico do Museu da República. Sobre sua vida profissional, pouco se sabe. Trabalhou na capital baiana, em ateliê à rua do Liceu, nº 3, e na Fotografia Americana, rua da Misericórdia, nº 3.

É interessante observar que, quando Flávio de Barros chegou a Canudos, o arraial já tinha sofrido sérias derrotas, e o próprio Antonio Conselheiro já havia morrido (fato ainda desconhecido pelo Exército), questão que contribuiu para a derrocada moral dos últimos combatentes. Apesar de todos os revezes e imprevistos que a guerra poderia ainda gerar, naquele momento não restavam dúvidas quanto ao destino dos acontecimentos. Canudos já estava cercada, as estradas de acesso dominadas pelo Exército, não havia água nem comida disponíveis para os conselheiristas e os pontos estratégicos para os combates já estavam totalmente dominados. Bastava registrar a vitória.

Imbuído do registro da epopéia militar, Flávio de Barros nos legou uma representação idealizada da vitória do Exército, visando transmitir a harmonia da tropa, a liderança dos comandantes e a eficiência dos soldados em sua missão. Estava em jogo o próprio papel do Exército no contexto da República. Das 68 fotografias, contidas em dois álbuns, 65% registram a oficialidade ou as tropas perfiladas, nas trincheiras ou acampamentos. Deve ser ressaltado que foram evitados registros dramáticos da guerra, como a degola dos prisioneiros, soldados feridos ou mortos, as instalações precárias dos hospitais de sangue, dentre outras.

Simulacros da guerra

Minimizar a bravura dos conselheiristas e acentuar a agilidade dos soldados republicanos foi a estratégia da fotografia intitulada "Prisão de Jagunços pela Cavalaria", onde se nota claramente que tanto os soldados quanto os chamados jagunços estão "posando" para o registro. Na verdade, foi uma cena rara, pois em sua maioria os conselheiristas não se entregaram, lutando até o final de suas forças, o que levou o general Artur Oscar a manifestar o desejo de ver um jagunço vivo.

Até uma ação de combate foi simulada, caso da fotografia "39ª Batalhão de Infantaria em Fogo" (veja à pág. 5-7), registro feito em Monte Santo, onde não ocorreram lutas (tratava-se de um Exército de tiro). Devemos considerar que as dificuldades técnicas próprias do trabalho de fotografia naquele período não permitiam a agilidade necessária para a produção de registros instantâneos. Equipamentos volumosos e pesados limitavam a ação do fotógrafo.

Em outro registro, talvez o mais conhecido de Flávio de Barros, que apresenta o cadáver de Antônio Conselheiro (veja à pág. 5-5), encontrado sob as ruínas da igreja por ele projetada e construída, fica ainda mais clara a importância da fotografia em Canudos. No telegrama enviado pelo ministro da Guerra ao presidente da República, após o final dos conflitos, comunicando a descoberta e reconhecimento do corpo do Conselheiro, aparece a preocupação com a comprovação do fato por meio do registro fotográfico: "De tudo se lavrará um auto em Canudos, sendo o cadáver fotografado".

Em duas fotografias aparecem soldados e oficiais durante uma refeição. Era a simulação do bem-estar das tropas em relação à alimentação que, ao contrário do sugerido na imagem, foi um dos problemas mais graves de organização do Exército. Favila Nunes, correspondente da "Gazeta de Notícias", do Rio, chegou a afirmar que o pior inimigo das tropas era a fome: "Quer oficiais, quer soldados, recebem por dia um litro de farinha para sete homens, com um pedacinho de carne e um pouco de sal, de maneira que não há uma só pessoa que não se ache mais ou menos incomodada".

O caráter humanitário das tropas, mesmo para com seus inimigos, foi destacado na imagem "Corpo Sanitário e Uma Jagunça Ferida", onde vemos uma mulher com vestes características dos conselheiristas deitada e médicos ao seu redor. Cena bem diferente da relatada por frei Pedro Sinzig, que em seu diário escrito durante as batalhas reproduz o diálogo que manteve com um acadêmico de medicina. Ao ser questionado sobre o tratamento de conselheiristas presos, este teria afirmado que, se dependesse dele, "mandaria decapitar todos os jagunços, tanto homens como mulheres e crianças".

Terminada a guerra, tratou o Exército de dar ampla divulgação às fotografias de Flávio de Barros, tornando-as objeto de exposição pública. Em 2 de fevereiro de 1898, apenas quatro meses após o final dos combates, a "Gazeta de Notícias" trazia a seguinte propaganda: "Campanha de Canudos (...) Curiosidade, Assombro, Horror, Miséria (...)", e convidava seus leitores a assistirem a "cenas de toda a guerra de Canudos tiradas no campo da ação pelo fotógrafo expedicionário Flávio de Barros, por consenso do comandante em chefe das tropas". Na primeira edição de "Os Sertões" (1902) aparecem três exemplares do conjunto.

As fotografias de Flávio de Barros, revestidas do caráter de representação fiel do real, tornaram-se simulacros da guerra de Canudos, destinados à afirmação da superioridade e organização do Exército, desfazendo a idéia de despreparo das tropas e atenuando os exageros cometidos contra combatentes e prisioneiros.

Estas imagens, se integradas ao contexto que as produziu, podem servir como documentos mais amplos sobre os fatos ocorridos em Canudos, que nos possibilitem minimizar o trágico destino de um episódio ainda tão carente de intérpretes, rompendo o silêncio que se tentou impor a Antônio Conselheiro e seus seguidores, tornando-os personagens sem voz e, portanto, sem história.

Cícero Antonio F. de Almeida é museólogo, professor da Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio) e chefe da Divisão de Pesquisa do Museu da República. Prepara atualmente uma edição comentada das 68 fotografias de Flávio de Barros, com o apoio da historiadora do Museu da República Maria Isabel Ribeiro Lenzi.

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