No Parque de Canudos, pesquisas procuram desvendar aspectos da vida da comunidade destruída há cem anos

Arqueologia na caatinga

PAULO ZANETTINI
ERICA M.R. GONZALEZ
especial para a Folha

A arqueologia pode contribuir para a dilatação do conhecimento e releitura do fenômeno da instalação de Antônio Conselheiro e sua gente às margens do rio Vaza-Barris, passados 100 anos?

É o que objetivamos com a retomada das pesquisas arqueológicas no Parque Estadual de Canudos, interrompidas após uma década.
Forçosamente, a abordagem arqueológica de uma Canudos ágrafa e iletrada, desaparecida sob fogo e água, passa pelo reexame de uma ampla região que transcende em muito os limites da "Tróia de barro e palha", dilatando-se para além da elipse de montanhas que constituíram as muralhas naturais de proteção de Canudos (serras do Cambaio, da Canabrava, do Coiqui, Poço de Cima, Cocorobó, Vermelha, Angico), tão bem assinaladas por Euclides.

Antônio dos Mares peregrinou com sua gente durante 20 anos por uma extensa região desde o Ceará até a Bahia, incluídas algumas incursões ao litoral, o que, certamente influenciou em seu projeto e decisão de instalação em Canudos. Esse aspecto foi pouco tratado até recentemente, prevalecendo o testemunho euclidiano cristalizado e repetido centenas de vezes de que Conselheiro optou por um local ermo, uma "fazenda abandonada" às margens do Vaza-Barris.

Por outro lado, Antônio, além de conselheiro, foi rábula, engenheiro, arquiteto, construindo igrejas e açudes, reformando cemitérios por onde passava, e adquiriu um certo know-how que não deve ser desprezado. Possivelmente teria detectado as potencialidades de água em Canudos para atender às necessidades de seu grupo que crescia dia após dia, durante a fase de mobilidade pelo sertão.

Corroborando para as potencialidades da cultura material dispersa no Parque de Canudos, a pesquisa arqueológica realizada em agosto último, nas ruínas da sede da Fazenda Velha de Canudos nos legou cerca de 2.000 fragmentos relacionados à tralha doméstica (louças inglesas, francesas, cálices de cristal, ferramentas etc.), indicando que os antecessores do Conselheiro mantiveram saudáveis relações econômicas com os comerciantes do litoral ao longo de boa parte do século 19.

Análise do terreno, dos artefatos e documentos escritos poderão fortalecer uma outra hipótese com relação à decisão de Antônio Conselheiro. Canudos foi propriedade e território gonçalvista, da família do Barão de Geremoabo (com quem Antônio manteve relacionamento próximo), opositor do então governador Luiz Viana, conforme detectou o geólogo Glauco Nascimento, integrante da equipe, ao buscar elementos para a reconstituição da concepção geopolítica jagunça.

Por sua vez, os mapas e cartas dos estrategistas do Exército mostram uma Canudos em 1897, confluência de veredas e estradas, entroncamento de vias, posicionada a meio caminho das bacias dos rios Itapicuru e São Francisco.

Documentos oficiais mencionam as vielas e becos sem saída da "urbs monstruosa" que conduziram tantos praças à rota da morte, espreitados e atacados pelos exímios atiradores jagunços que saltavam de suas casamatas e tocas. Essa mesma visão caótica da cidadela acabou servindo para que a história sacralizasse a estapafúrdia cifra de 25 mil habitantes para Belo Monte de uma centúria atrás. Será que o traçado da cidade não continha um plano urbanístico voltado para a defesa?

Por que Canudos às margens do Vaza-Barris? Por que um açude tão gigantesco como o de Cocorobó, exatamente naquelas paragens?

Será que o açude, promessa de Vargas, concretizou-se na década de 1970 apenas para sepultar de vez da memória nacional o exemplo canudense de luta contra a opressão e a miséria?

Mais uma vez o terreno, se indagado, nos fornece outra hipótese. É naquela porção de terras que encontramos as melhores condições de captação e represamento de águas em toda a extensão do Vaza-Barris, devido à impermeabilidade e características geológicas e pedológicas regionais. Um açude como o de Cocorobó só poderia ser construído ali mesmo.

No solo árido e pedregoso do Parque de Canudos, identificamos um sem-número de áreas de ocorrência e sítios pré-históricos plenos de lascas e utensílios de pedra lascada que começam a ser estudados pela equipe e indicam que a região foi propícia à ocupação humana milênios antes da chegada do Conselheiro. Em outra área do parque, cadastramos uma floresta de pedra, rica em troncos fossilizados de coníferas, também indicando que, num passado ainda mais remoto, a região contava com um clima muito mais ameno e uma verdadeira floresta. Nas cacimbas e poços escavados, os moradores vivem encontrando restos fósseis de antigas preguiças gigantes e outros animais pleistocênicos.

Retirando o filtro da lente oficial do conjunto de fotografias deixadas pelo fotógrafo Flávio de Barros, é possível observar por entre as cenas da implacável destruição alguns elementos interessantes. As casas canudenses apresentam-se abarrotadas de potes, tigelas, gamelas e outros utensílios, acenando para uma logística precisa de armazenamento de víveres. Perguntamo-nos como os canudenses resistiram a um ano intenso de combates, aparentemente cercados pelo Exército? De onde vinha a louça, a farinha o bode, a pólvora, a água? De Juazeiro? Do Canché? Várzea da Ema ou Cumbe? Seria possível manter milhares de pessoas aptas para o combate apenas com o saque às fazendas da região?

E hoje? Lá está a nova Canudos -um dos municípios mais pobres do país, clamando pelo progresso. Observando do Alto do Cocorobó o processo galopante de desertificação no parque, refletimos sobre o possível impacto e stress ecológico causado à região com a instalação e destruição de Belo Monte naquele frágil ecossistema.

Acreditamos que a pesquisa arqueológica, retomada recentemente no seio do território canudense -que a nosso ver confunde-se com os limites físicos da bacia hidrográfica do Vaza-Barris-, poderá em breve oferecer respostas a essas e outras tantas indagações, fruto da análise cuidadosa da documentação textual promovida há dezenas de anos por José Calasans, Renato Ferraz, Marco Villa e tantos outros pesquisadores.

E nos arriscamos a afirmar que iremos nos aventurar por caminhos da história de Belo Monte nunca dantes navegados, apenas pelo fato de estarmos lidando com novas fontes documentais, os artefatos, que, por sua própria natureza, nos remetem diretamente aos protagonistas dessa saga fantástica de formação, organização e destruição de uma das mais complexas experiências comunitárias no sertão do Brasil.

Paulo Zanettini e Erica M.R. Gonzales são arqueólogos e responsáveis pela retomada das pesquisas no Parque Estadual de Canudos. Essas pesquisas foram concebidas no âmbito das ações desenvolvidas pela Universidade do Estado da Bahia/PPG, por intermédio do Centro de Estudos Euclides da Cunha, com recursos financeiros do CADCT/Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia.

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