Antes de instalar sua utopia em Canudos, o cearense Antônio Conselheiro pregou contra a República e peregrinou pela Bahia e Sergipe

O Bom Jesus do sertão

JOSÉ CALAZANS
especial para a Folha

Antônio Vicente Mendes Maciel, Conselheiro de alcunha, também apelidado Santo Antônio dos Mares, Santo Antônio Aparecido, Santo Conselheiro, Bom Jesus Conselheiro, Nosso Bom Jesus, era cearense e nasceu na Vila de Santo Antônio de Quixeramobim, a 13 de março de 1830. No seu batistério consta que o párvulo Antônio era pardo e bastardo. A bastardia durou pouco, porque, em 1834, sua genitora, Maria Joaquina, em "articulo mortis", contraiu matrimônio com Vicente Mendes Maciel, com quem vivia. Antônio, Francisca e Maria, suas irmãs, se tornaram legitimados por consequente matrimônio.

Não foi uma criança pobre, os problemas de sua infância foram outros: orfandade aos quatro anos, maltratos da madrasta, segunda mulher de Vicente, notícias alarmantes das lutas dos seus parentes pelo lado paterno com as famílias dos Araújos e Veras. A vida do pai também. Negociante conceituado, dono de uma loja de secos e molhados, com cinco portas de frente e uma de fundo, Vicente Maciel foi se perdendo pela bebida e pelo jogo. Ficava violentíssimo quando estava embriagado. Ao morrer, em 1855, era precária sua situação financeira. Antônio Vicente não teve condições de manter a loja.

Seu pai, analfabeto, procurava dar ao primogênito uma boa instrução. Aprendeu a ler, escrever e contar. Sua letra era firme e seu texto claro. Andou estudando latim, enxertando frases da língua de Horácio nos seus longos "conselhos", geralmente baseados na Bíblia sagrada, que conhecia razoavelmente. Era um "biblado", declarou um velho sertanejo ao antropólogo Renato Ferraz. Sabendo latim e citando o "livro dos livros", podia enfrentar os vigários sertanejos. Seus conselhos eram longos, suas conversas "tête-à-tête", rápidas. Voz baixa, alterada nos anos de sua pregação anti-republicana, quando combatia o novo regime, o casamento civil, a secularização dos cemitérios, a maçonaria, os protestantes. Pessoalmente falava aos seguidores com cordialidade, a todos tratando de irmãos. Por seu turno, deviam chamá-lo "meu pai".

Deixando Quixeramobim, após o malogro comercial, já casado com Brasilina, com quem era aparentado, tentou, sem bom êxito, várias atividades: magistério, comércio, advocacia, tudo em nível auxiliar. O casamento não deu certo, por infidelidade da mulher, que lhe dera alguns filhos, de nomes e destinos desconhecidos. O desenlace matrimonial deu origem à tremenda estória: ele matara a mulher infiel e a mãe denunciadora. A história apurou que o Conselheiro ficara órfão aos quatro anos...

Apareceu como beato, chegou a Conselheiro. O beato tirava rezas, arrecadava dinheiro para as igrejas. O Conselheiro falava, pregava, dava conselhos. Os padres aceitavam o primeiro e combatiam o segundo. A palavra oficial da Igreja determinava que a pregação era exclusividade do vigário. O arcebispo de São Salvador deu ordens neste sentido. Porém muitos curas não obedeciam.

Duas fases na vida conselheirista. Em 1874, quando chegou ao centro das Províncias de Bahia e de Sergipe, o Conselheiro, com prestígio crescente, peregrinou. Construiu e restaurou capelas, levantou muros de cemitérios, abriu tanques d'água, fez "milagres". Para alguns, um enviado de Deus, porém ele afirmava categórico: "Deus é outra pessoa". Era apenas um peregrino, acompanhado de numeroso séquito; pequenos agricultores, negros 13 de Maio, caboclos de aldeamentos, gente sem recursos, doentes. Eram andejos. Paravam por algum tempo para fazer obras.

Em 1893, o quadro se modificou. Depois do choque de Masseté, quando os conselheiristas desbarataram uma força policial e o governo anunciou a remessa de novas tropas, Antônio Vicente se estabeleceu em Canudos, povoado antigo à margem do rio Vazabarris, que conhecia havia muito tempo. Rebatizou a localidade, dando-lhe o nome de Belo Monte. Criou um clima de tranquilidade local. Respeitavam-no. Seu monarquismo era utopia. De vários pontos do sertão apareciam os conselheiristas que iam viver, não raro precariamente, numa terra paradisíaca...

Caminhavam para lá movidos pela fé. Queriam morar ali, sem pensar em conquistar novas terras. Nem restaurar a monarquia.
Cá de fora, não entenderam assim. Interesses políticos e patrimoniais deram novos rumos e destino sangrento ao sertão do Conselheiro. Morreram milhares de sertanejos, denominados pejorativamente de jagunços, de bandidos, malfeitores. O maior equívoco da história nacional. O Santo Conselheiro, que morreu a 22 de setembro de 1897, faz um século, diziam os sobreviventes da guerra, só pregava o bem, a salvação das almas.


José Calazans é historiador, folclorista, professor emérito da Universidade Federal da Bahia e membro da Academia de Letras da Bahia; é autor de "Quase Biografia de Jagunços" e "Cartografia de Canudos" (edição do Conselho de Cultura da Bahia); está preparando uma biografia de Antônio Conselheiro.

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