O dinheiro afluía a Canudos, mas não permeava as relações sociais e econômicas, que tinham por base o comunitarismo

A aurora de Belo Monte

MARCO ANTONIO VILLA
especial para a Folha

Em 1893 Antônio Conselheiro resolveu fundar um arraial após quatro incidentes com as forças policiais do Estado da Bahia, aproveitando sua experiência de organizador de comunidades.

Chegara o momento de criar um arraial que permitisse congregar os seus seguidores imediatos e aqueles que sempre o admiraram, mas não podiam viver sem uma morada fixa.

Logo ao se instalar às margens do rio Vaza-Barris, em meados de junho de 1893, Conselheiro alterou a denominação do local, passando a chamá-lo de Belo Monte. Lá encontrou um pequeno núcleo com 50 casebres e dois negociantes e criadores instalados com suas famílias, que terão um importante papel no arraial conselheirista.

A organização econômica da comunidade seguia a tradição sertaneja. Os conselheiristas, desde os anos de nomadismo, adquiriam gado por meio de esmolas, caçavam e auxiliavam os pequenos agricultores no plantio e colheita por meio de mutirões. Esta prática comunitária se manteve durante a constituição do arraial, pois parcela considerável da população -mulheres, crianças, velhos e desvalidos de toda ordem- não estava vinculada à produção agrícola ou a pecuária.

Assim, a cooperação no processo produtivo foi elemento essencial para a reprodução da comunidade, dadas as condições do solo e do clima e ao baixo desenvolvimento das forças produtivas. Não é o caso de considerar a existência de um suposto socialismo utópico devido à gratuidade na entrega da terra aos novos moradores, pois as terras pertenciam à capela de Santo Antônio, doação da família Garcia D'Ávila. No arraial, havia o direito de propriedade sobre a produção familiar, assim como um fundo comum -organizado com parcela do excedente produzido pela comunidade-, que mantinha uma parcela da população que não tinha condições de subsistir dignamente. A organização econômica tinha como base o comunitarismo, isto é, a responsabilidade de cada indivíduo pela manutenção da coletividade.

Segundo o jornalista Manuel Benício, às margens do rio Vaza-Barris eram cultivados diversos legumes, milho, feijão, batata, melancia, cana-de-açúcar, entre outros gêneros. Nas áreas próximas do arraial, caçavam, possuíam pomares e mantinham pequenas fazendas de criação de cavalos e gado vacum. A criação de bode era extremamente importante para a comunidade, havendo vários curtumes à beira do rio, e o couro acaba se transformando no principal produto no intercâmbio com as outras vilas e cidades da região.

Parte dos lucros deste comércio, além de parcela dos salários recebidos pelos trabalhadores do arraial que vendiam sua força de trabalho nas fazendas da região, era destinada à caixa comum da comunidade. As mulheres participavam nas atividades produtivas fabricando farinha, redes e sal da terra, enquanto os ferreiros produziam foices, facas e chuços.

Devido ao comércio, às esmolas e doações que os novos moradores traziam ao chegar ao arraial, o dinheiro afluía a Canudos, mas devido à organização econômica da comunidade, não permeava as relações sociais. Mesmo aqueles que guardavam algum dinheiro, não tinham como usá-lo no arraial, dada a economia de escassez, além do que os princípios religiosos dificultavam a acumulação e a demonstração de riqueza.

Antônio Conselheiro ao fundar Belo Monte acabou transformando o arraial também em um centro religioso, pois muitos sertanejos procuravam-no para ouvi-lo. Assim, muitos conselheiristas continuavam vivendo nas comunidades próximas, ampliando o raio de influência do líder de Belo Monte e aumentando o perigo para o Estado republicano, pois, ao invés de se concentrarem em um só local, o que facilitaria a repressão, estavam presentes em toda a região.

Por outro lado, crescia a cada dia o número de conselheiristas que se transferiam com suas famílias para Belo Monte, atraídos pela novidade representada por uma comunidade que surgia e se desenvolvia em torno de um líder religioso. Com o correr dos meses, tornou-se necessário normatizar as relações entre os habitantes do arraial, além de desenvolver um conjunto de atividades que possibilitassem mantê-los, principalmente devido ao contínuo fluxo de novos moradores, que ampliavam as demandas sociais sem que houvesse uma base econômica que conseguisse rapidamente atendê-las. Essa migração acabou acirrando os conflitos com os latifundiários da região, isso quando, anos antes, em 1888, com a Abolição, já tinha ocorrido uma desestruturação da mão-de-obra das fazendas.

Em vez da ausência de propriedade, do igualitarismo e de uma economia natural, Belo Monte assistiu a um processo paulatino de estabelecimento e consolidação de uma estrutura econômica e de poder. Antônio Conselheiro e seus seguidores sobreviveram durante vários anos, antes da criação do arraial, em plena igualdade econômica. O constante nomadismo impediu a acumulação de bens e não havia uma hierarquia advinda da necessidade de sobrevivência, pois obtinham o que necessitavam -que era relativamente pouco- por meio da caça, coleta e esmola.

O crescimento do arraial obrigou o surgimento de uma nova estrutura, mas isso não significou o estabelecimento de relações de dominação política. O comunitarismo garantia a subsistência dos moradores, e a liderança e os princípios religiosos do Conselheiro, além do afastamento da política oligárquica -diferentemente do Padre Cícero-, impediram o surgimento de uma camada dominante que pudesse se apropriar do excedente econômico e estabelecer laços de dependência política.

A permanência e o crescimento contínuo do arraial, o enfrentamento com êxito das demandas surgidas com a chegada de novos moradores, a manutenção de canais de participação nos negócios das comunidade e o controle exercido sobre a produção por cada família, transformaram Belo Monte em uma referência concreta para o sertanejo. Lá foi possível integrar as necessidades econômico-sociais às religiosas, concretizando plenamente o que para o sertanejo nunca deveria estar dissociado: a religião e a vida. Assim, Belo Monte acabou se constituindo na materialização do sonho sertanejo e, mesmo sem o querer, em obstáculo ao pleno domínio do coronelismo. Cedo ou tarde a República, depois de eliminar outros adversários, iria voltar a sua vista para o pequeno arraial às margens do Vaza-Barris. A simples existência de Belo Monte era uma ameaça aos novos donos do poder.

Marco Antonio Villa é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Canudos - O Povo da Terra" (Ática).

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