O
sonho dos espaços sagrados
EDUARDO HOORNAERT
especial para a Folha
Até
bem recentemente, as ciências humanas negligenciaram
o estudo empírico da religião. O enfoque costumava
ser o institucional-político, enquanto a religião
vivida não merecia maiores investigações.
"Os Sertões" de Euclides da Cunha não
foge ao figurino.
No tratamento dado ao conflito, a manifesta consistência
religiosa que caracteriza a defesa de Canudos é reduzida
ao estatuto de ignorância e fanatismo: "Não
havia como reagir contra adversários por tal forma
transfigurados pela fé religiosa" (1).
É que Euclides acaba sacrificando a religião
dos canudenses no altar da honorabilidade nacional, resolvendo
dessa forma o impasse interpretativo dos terríveis
acontecimentos. Só assim a elite do país consegue
recuperar-se do trauma causado pela memória de uma
ação tão covarde por parte do governo
contra uma comunidade de pobres sertanejos. "Os Sertões"
funcionam pois como exorcismo junto à inteligência
brasileira, ao converter de honorabilidade sacrificial a extrema
agressividade que caracteriza o conflito e ao revestir de
beleza verbal a vergonha da campanha militar. Trata-se de
uma obra articulada em torno da construção da
civilização por meio da violência e da
destruição.
O "bode expiatório" resulta ser a religião
dos canudenses, reduzida a um primitivo seguimento de um desequilibrado
mental, um "terribilíssimo antagonista",
um "gnóstico bronco... um heresiarca do século
2 em plena idade moderna... anacoreta sombrio, de olhar fulgurante,
monstruoso" (2). A imagem desse Conselheiro extravagante
impressionou tão poderosamente o imaginário
brasileiro, que a iconografia em torno de Canudos ainda não
conseguiu criar um beato normal, dentro da normalidade
sertaneja.
Só por meio da reconsideração teórica
da religião dos sertanejos é que se poderá
avançar nesse campo. Os sertanejos, como todos, não
vivem só de pão, mas também de sonho.
Somos todos sonhadores, mas acontece que o sonho se tornava
mais poderoso para os vagos do sertão (Guimarães
Rosa) do final do século 19, os que viviam privados
da fartura em carne, leite e cuscuz existente nas casas grandes
das fazendas, barrados na entrada dos precaríssimos
postos de saúde, excluídos do igualmente precário
esquema de educação pública.
O sonho cresce na medida da privação. E, quando
aparece Antônio Vicente Maciel, o andarilho cearense,
rapidamente forma-se um elo de comunicação e
empatia. O pessoal forma um cortejo que passa a atravessar
o sertão no compasso interminável e aparentemente
negligente dos benditos e das ladainhas. O brilho interno
que irradia o sisudo penitente fascina o grupo mais brincalhão,
instaurando um continuado processo de negociação
entre sisudez cristã e ludicidade ancestral (3).
Por enxergar horizontes além da imensidão dos
sertões, o Conselheiro consegue seduzir o grupo para
tarefas além da construção de açudes
e canais de irrigação, muros de cemitério
e cacimbas -todas elas imperiosas. O beato gosta mesmo é
da construção de igrejas, algumas de beleza
duradoura, como a de Crisópolis na Bahia. Eis o sonho
além das imediatas necessidades, que passa a ser compartilhado
pelo grupo, no entusiasmo com que se carrega pedra e cal,
toros de madeira e toscos tijolos.
A igreja é o reflexo terrestre do mundo divino, torna
esse conturbado mundo inteligível e até certo
ponto aceitável, pois é lugar de real presença
divina, centro do mundo, onde tudo nasce. Antônio Conselheiro
faz com que os sertanejos sonhem com imensos espaços
sagrados e se unam, marchando em direção ao
indizível por meio de uma geometria construída
por suas próprias mãos.
Quando o grupo chega em Canudos, em 1893, a primeira tarefa
consiste em construir uma ampla "igreja nova". "Erguida
dominadoramente sobre as demais construções,
assoberbando a planícia externa" (4), a Igreja
Nova torna-se centro do sertão, ponto de referência
da "cidade de Deus", símbolo de uma vida
nova. Pois é bem de vida nova que se trata em Canudos.
Em torno do "santo homem" articula-se um tipo de
parentesco altamente satifatório, não mais puramente
consanguíneo nem familiar, mas decorrente da figura
do solitário habitante do santuário que se situa
no centro do povoado (5). O Conselheiro chama a todos de irmãos
e por todos é chamado de "meu pai conselheiro"
(6).
O modelo de comportamento é a vida do beato, não
a dos casais. Vivendo sem mulher nem filhos, o beato estranhamente
é a imagem perfeita do pai. Todos tornam-se filhos
do Conselheiro. O mundo vira uma família. Daí
de um lado grande plasticidade social, abertura para com os
outros, mas do outro lado uma pronunciada tendência
no sentido da rejeição da sexualidade como festa,
sacralidade, forma suprema de comunicação.
Pai consciente de seus deveres, Antônio Vicente dá
programados conselhos aos seus filhos, em horários
marcados, que ficam tão profundamente gravados que,
em 1947, quando Odorico Tavares empreende a primeira entrada
do sertão atrás da memória oral de Canudos,
o que aparece predominantemente é a memória
dos conselhos: "Ele só podia ser um santo homem.
Não mandava matar, não mandava furtar, não
mandava mentir. Só levava para o bem. Quem quiser se
desgraçar, se desgraçou" (7). É
fundamentalmente por meio desse gratificante parentesco que
Canudos torna-se, no imaginário de seus habitantes,
"a terra da promissão, onde corre um rio de leite
e são de cuscuz de milho os barrancos", segundo
palavras colhidas pelo missionário João Evangelista
em 1895 (8).
Essa convivência entre sisudez e abertura social, condicionada
pela difícil negociação com os administradores
oficiais da religião católica e finalmente resultante
num conflito total com o Estado, constitui o grande desafio
atual de Canudos. Pois Canudos, após cem anos, permanece
um desafio ainda não solucionado, aponta para uma convivência
mais gratificante entre brasileiros, não só
-nem principalmente- em termos de bem-estar social, mas sobretudo
pela perseverante construção de uma nacionalidade
a partir de paradigmas originariamente cristãos: a
indignação, a resistência, a solidariedade,
a esperança (9).
Notas:
1. Euclides da Cunha, "Os Sertões", Livraria
Francisco Alves, págs. 73.
2. Ibidem, págs. 407 e 27.
3. E. Hoornaert, "Os Anjos de Canudos", Vozes, págs.
32-38.
4. E. Cunha, op. cit., pág. 224.
5. E. Hoornaert, op. cit., págs. 47-51.
6. J. Calasans, "Introdução", T. Gaudenzi,
"Memorial de Canudos", Fund. Cult. do Estado da
Bahia, pág. 18.
7. Odorico Tavares, "Canudos Cinquenta Anos Depois",
Conselho Estadual de Cultura, pág. 51.
8. Cit. por Diatahy B. de Menezes, "Canudos, as Falas
e os Olhares". Edições UFC, pág.
131.
9. E. Hoornaert, "Cristãos da Terceira Geração",
Vozes.
Eduardo Hoornaert é pesquisador da Universidade Federal
da Bahia, autor, entre outros, de "Os Anjos de Canudos"
(Vozes).
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