"Foram mortos, nessa ocasião, cerca de 500 ou 600 mouros"

Combate em Calicute

A grande mortandade de mouros e cristãos em Calicute
Depois de cerca de três meses em terra, os contratos estavam assinados e duas das nossas naus carregadas com especiarias.

Um dia, o capitão mandou dizer ao rei que estava há três meses na cidade, mas que somente duas de suas naus tinham sido carregadas. Mandou dizer igualmente que os mouros lhe escondiam mercadorias e, secretamente, carregavam as naus destinadas a Meca, as quais eram rapidamente despachadas. O capitão afirmava ainda que ficaria muitíssimo grato se o monarca cuidasse disso com presteza, pois aproximava-se a hora da sua partida. O rei respondeu ao capitão que lhe daria todas as mercadorias que quisesse e que nenhuma nau dos mouros seria carregada antes das nossas. Respondeu também que, se o capitão visse partir alguma nau moura, poderia detê-la, verificar se carregava mercadoria e, em caso positivo, ele entregaria ao capitão, pelo mesmo valor pago pelos mouros, a mercadoria apreendida.

No dia 16 de dezembro, Aires Corrêa estava fechando as contas com dois feitores e escrivães (12) de duas das nossas naus que estavam carregadas e prontas para partir, quando viu sair uma nau moura carregada de mercadorias. O nosso capitão a apreendeu. O capitão dessa nau, acompanhado dos mouros mais importantes que estavam a bordo, desceu à terra e dirigiu ao rei grandes lamentos e clamores. Os mouros puseram-se a dizer ao monarca que levávamos de sua terra mais riquezas do que havíamos trazido e que éramos os piores ladrões e trapaceiros do mundo. Disseram ainda que, se tínhamos tomado a sua nau em seu próprio porto, o que não faríamos daqui para frente.

Desse modo, viam-se obrigados a matar-nos a todos e a exigir que sua alteza saqueasse a casa do feitor. O rei, homem sedicioso que era, concordou que assim se fizesse. Não sabíamos de absolutamente nada do que se passava. Alguns dos nossos estavam, inclusive, em terra, tratando dos seus negócios. Vimos, então, uma multidão se dirigir a eles, atacando-os e ferindo-os.

Saímos em seu socorro e matamos, na praia, sete ou oito inimigos. Eles, por sua vez, feriram de morte dois ou três dos nossos. Éramos em número de 70, com elmos e espadas. Eles eram incontáveis e vinham armados com lanças, espadas, escudos, arcos e flechas. Fomos de tal modo pressionados que nos vimos obrigados a buscar refúgio na casa da feitoria.

Ao realizarmos essa manobra, cinco ou seis dos nossos foram mortos. Mal fechamos a porta, o que fizemos com dificuldade, eles nos atacaram, embora a casa fosse rodeada por um muro da altura de um homem sobre um cavalo. Tínhamos conosco umas sete ou oito bestas, com as quais matamos muita gente. Havia, porém, mais de 3.000 guerreiros reunidos. Levantamos uma bandeira para que, das naus, nos enviassem socorro. Os batéis vieram à praia e dispararam as suas bombardas, mas era inútil. Nisso, os mouros começaram a derrubar o muro da casa, o que realizaram em menos de meia hora. Soaram, então, as trombetas e baterias, em meio a gritos de grande contentamento. Pareceu-nos que o rei se encontrava no meio da multidão, porque avistamos um de seus criados.

Aires Corrêa, vendo que combatíamos havia duas horas infrutiferamente e que não poderíamos aguentar por muito mais tempo, determinou que abríssemos caminho entre os inimigos e batêssemos em retirada para a praia, onde os batéis nos poderiam salvar. E foi o que fizemos. A maior parte dos nossos homens conseguiu entrar na água. Os batéis, porém, não ousavam se aproximar. Por ausência de socorro, morreram Aires Corrêa e 50 outros homens (13). Escapamos a nado, 20 homens ao todo, entre os quais um filho de Aires Corrêa de cerca de 11 anos. Vínhamos muito feridos e entramos nos batéis quase afogados. O capitão dos ditos batéis era Sancho de Tovar, pois o capitão-mor estava enfermo.

Fomos, então, reconduzidos às naus. Quando o capitão-mor viu essa dissensão e maus-tratos, mandou que fossem aprisionadas dez naus dos mouros que estavam no porto; ordenou também que matassem todos os que estivessem a bordo. Foram mortos, nessa ocasião, cerca de 500 ou 600 mouros e aprisionados uns 20 ou 30, que estavam escondidos no porão com a mercadoria. Tomamos tudo o que havia no interior das naus. Uma delas levava três elefantes, que matamos e comemos. Depois de descarregadas, as dez embarcações foram afundadas. No dia seguinte, as nossas naus aproximaram-se da terra e bombardearam a cidade, matando muita gente e causando muito dano. Da terra, respondiam com o fogo de uma bombarda muito fraca. Nesse entretanto, passaram duas naus que iam para Pandarani, distante cinco léguas de Calicute. Essas naus, que traziam muitas pessoas a bordo, navegaram para a terra, onde havia outras sete naus grandes em águas rasas. Como não podíamos aprisioná-las, pois estavam em águas muito rasas, o capitão determinou que navegássemos para Cochim, onde carregaríamos as naus.

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