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"Os
dois bandidos que tinham ficado no lugar puseram-se a chorar quando
da partida"
Relação
do Piloto Anônimo
O
BRASIL
De como as naus discorriam com a borrasca (2)
A 24 de abril (3), quarta-feira da oitava de Páscoa, a armada
avistou terra, o que causou grande prazer a todos. Decidimos ver
que tipo de terra era e descobrimos que o lugar abundava de árvores
e que havia muita gente caminhando pela praia.
Lançamos âncora na foz de um pequeno rio. O capitão
mandou baixar um batel ao mar e ordenou que se verificasse que tipo
de gente era aquela. Os homens da armada notaram que era gente de
cor parda -entre o branco e o negro-, de boa compleição
e de cabelos compridos, notaram ainda que andavam nus como tinham
nascido, sem vergonha nenhuma. Todos traziam os seus arcos com flechas,
aparentando estarem prontos para defender aquele rio. Não
havia no batel ninguém que pudesse compreender a sua língua,
o que obrigou os homens a retornarem ao capitão.
Entrementes, fez-se noite e despencou uma enorme tempestade.
Na manhã do dia seguinte, ainda em meio à tempestade,
levantamos âncora e costeamos rumo ao norte em busca de um
porto onde a armada pudesse deter-se. Soprava o siroco.
Finalmente, encontramos um lugar onde deitar âncora. Havia
lá alguns homens da terra que pescavam em umas barquetas.
Um dos nossos batéis foi ao encontro desses homens, capturou
dois deles e os trouxe à presença do capitão,
que desejava saber que tipo de gente era. Todavia, não conseguíamos
nos entender nem por fala nem por gestos. O capitão ainda
os deteve a bordo durante toda aquela noite, ordenando, no dia seguinte,
que se lhes pusessem camisa, casaco e barrete vermelho e os deixassem
em terra. Eles ficaram muito contentes com as roupas e se maravilharam
com tudo o que lhes foi mostrado.
Uma
raiz com a qual fazem pão e outros dos seus costumes
Naquele mesmo dia, 26 de abril da oitava de Páscoa, determinou
o capitão-mor que se ouvisse missa, mandando erguer uma tenda
e um altar num determinado sítio, para onde todos da armada
se dirigiram e ouviram a celebração e a prédica.
Os homens da terra que se encontravam nas proximidades bailavam,
cantavam e tangiam uma espécie de trombeta. Imediatamente
depois da cerimônia, dirigimo-nos para os navios. Nessa ocasião,
os homens da terra entraram no mar, com água até abaixo
dos sovacos, dançando e cantando com grande alegria e alvoroço.
Terminado o jantar do capitão, tornamos a desembarcar e buscamos
distração e divertimento junto aos homens da terra,
que começaram a negociar com os da armada, trocando os seus
arcos e flechas por guisos, folhas de papel e peças de pano.
Prazerosamente despendemos todo aquele dia na sua companhia e retornamos
tarde para os navios. Encontramos, no lugar, um rio de água
doce.
No dia seguinte, o capitão-mor determinou que se fizesse
a aguada e que se recolhesse lenha. Os homens da armada dirigiram-se,
então, para a praia e, no cumprimento dessas suas tarefas,
contaram com a ajuda dos homens da terra. Alguns dos nossos foram
até o lugar onde viviam esses homens, três milhas afastado
do mar. Uma vez lá, negociaram uns papagaios e uma raiz de
nome inhame; essa raiz faz as vezes de pão entre eles e também
é comida pelos árabes (4). Tais artigos foram trocados
por guisos e folhas de papel.
Permanecemos cinco ou seis dias nesse lugar, cuja gente é
escura, tem os cabelos longos e a barba pelada. Eles andam nus,
sem nenhuma vergonha, e trazem as pálpebras e a região
abaixo da sobrancelha pintadas com figuras nas cores branca e preta
e azul e vermelha. O lábio da boca, isto é, o inferior,
é furado e o buraco é atravessado ou por um osso tão
extenso quanto um prego, ou por uma comprida pedra verde ou azul,
a qual fica dependurada no dito orifício. As mulheres, muito
belas de corpo, andam também nuas e sem nenhuma vergonha.
Seus cabelos são igualmente longos. As casas em que vivem
são de madeira, cobertas com folhas e galhos de árvores
e sustentadas por muitas colunas de madeira. No meio dessas casas,
entre as colunas e a parede, eles dependuram redes de algodão
-que podem acomodar um homem- e entre elas fazem uma fogueira. Uma
única casa pode abrigar entre 40 e 50 leitos armados como
teares.
Dos papagaios da terra há pouco descoberta
Não vimos neste lugar nem ferro nem outros metais. Os homens
da terra cortam a madeira com pedras. Pássaros há
muitos e de variados tipos, especialmente papagaios, os quais podem
ser de muitas cores e alcançar o tamanho de uma galinha.
Há outras aves igualmente belas, cujas plumagens são
usadas pelos homens da terra para fazer os chapéus e barretes
que usam. A terra é abundante em árvores de diferentes
tipos e tem uma água excelente, além de inhames e
algodão. Não vimos nenhum animal.
O lugar é grande e não sabemos se é ilha ou
terra firme, porém, por sua grandeza supomos tratar-se de
terra firme. O clima é muito bom. Os homens da terra, que
são grandes pescadores, confeccionam umas redes e pescam
variados tipos de peixe. Vimos um exemplar por eles pescado que
tinha o tamanho de um tonel, mas era mais comprido e mais redondo,
sem dentes e com a cabeça semelhante à de um porco.
Seus olhos eram pequenos e suas orelhas, longas como um braço
e largas como meio braço.
Por baixo do corpo, esse peixe tinha dois furos e sua cauda era
do comprimento e da largura de um braço. Pés não
se viam em nenhum lugar. A sua pele tinha pêlos como a do
porco e era da grossura de um dedo. A sua carne era branca e gorda
como a do porco (5).
Durante os dias em que estivemos ancorados, o capitão fez
saber ao nosso sereníssimo rei do achamento desta terra e
deixou nela dois bandidos, condenados à morte, que trazíamos
na armada com esse propósito. O capitão prontamente
despachou um pequeno navio de mantimentos, que acompanhava as 12
naus da esquadra, com cartas para o rei, relatando tudo quanto se
tinha visto e descoberto. A seguir, desembarcou, mandou fazer uma
grande cruz de madeira e determinou que a fixassem no solo. Os dois
bandidos que tinham ficado no lugar puseram-se a chorar quando da
partida, sendo consolados pelos homens da terra, que demonstraram
ter piedade deles.
Leia
mais: A
terra da Arábia
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