Um sonho de palácios

JEAN M. CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha


Foi em 1993, por iniciativa da professora Margarida Vieira Mendes, que teve início o projeto de tradução da "Clavis Prophetarum" (Chave dos Profetas), obra inédita do Padre Antônio Vieira, escrita originalmente em latim. Esse ambicioso empreendimento, apoiado financeiramente pela Comissão para a Comemorarão dos Descobrimentos Portugueses e pela Biblioteca Nacional de Lisboa, contou com a participação do professor Arnaldo Espírito Santo (Faculdade de Letras de Lisboa), um latinista ligado ao latim eclesiástico e à cultura religiosa, moderna (século 16) e medieval.

A esse pesquisador coube a difícil missão de verter o texto para o português -um texto obtido a partir da comparação de 11 dos 12 apógrafos conhecidos da "Clavis" -, preservando, tanto quanto possível, o complexo estilo e o rico vocabulário de Vieira.

A publicação do primeiro dos três volumes da "Clavis", que será acompanhada de um estudo histórico-crítico assinado pela professora Margarida Vieira Mendes, dar-se-á, se tudo correr como o previsto, em novembro deste ano.

A obra, que tem como subtítulo "De Regno Christi in Terris Consumato" (A Consumação do Reino de Cristo na Terra), consumiu cerca de 17 anos da vida de Vieira e, quando da sua morte, em 1697, ainda não estava totalmente concluída.

Como explicou à Folha o professor Arnaldo Espírito Santo, não se trata de um texto que irá promover uma reviravolta na interpretação do pensamento vieirense. Contudo, a "Clavis" não deixa de ser uma espécie de ponto culminante do seu trabalho, apresentando de uma forma alongada muitos dos temas que preencheram os seus sermões e oferecendo uma visão pormenorizada de como o sermonista concebia o trabalho de catequese no novo mundo.

Sobre este último aspecto, salienta Espírito Santo, o leitor terá oportunidade de avaliar que Vieira, profundo conhecedor das dificuldades da prática missionária em terras americanas, tinha sérias restrições às propostas de catequização defendidas por alguns teólogos do Velho Mundo.

Fundamental ou não para uma reinterpretação do pensamento desse grande escritor, a "Clavis" parece ter sido, para Vieira, a sua obra mais grandiosa e significativa. Ao menos é isso que se depreende de uma missiva, escrita por ele em junho de 1696, na qual compara essa obra a uma palácio e os sermões a meras choupanas:
"Lembrando as instâncias de Vossa Mercê, muito mais do que posso me aplico àquela fábrica que Vossa Mercê compara aos palácios de nossa corte... E estando eu em Lisboa todo aplicado à obra, a força de Castela e Portugal me a tiraram das mãos, querendo que em lugar de palácios altíssimos me ocupasse em fazer choupanas, que são os discursos vulgares que até agora se imprimiram".

Diante disso, só nos resta esperar até novembro para podermos finalmente adentrar esse tal palácio construído pelo maior sermonista da língua portuguesa.

Por hora, a Folha publica abaixo um pequeno fragmento da "Clavis Prophetarum", gentilmente cedido pelo tradutor.

O trecho foi retirado de um capítulo, suprimido pela censura eclesiástica em algumas das cópias da "Clavis", em que Vieira procura demonstrar que aqueles homens, privados do conhecimento de Deus e de suas verdades, estão ilibados de qualquer culpa ou pena.


Jean Marcel Carvalho França é mestre em sociologia da cultura, doutor em literatura comparada Pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Universidade Nova de Lisboa
(Portugal)

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