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Leia
um trecho da "Clavis"
PADRE ANTÔNIO VIEIRA
"Em
tempos passados havia neste colégio da Baía um escravozinho
comprado, com uns 14 anos de idade, de raça negra, natural
do interior da barbárie dos angolanos, já feito cristão
e bem instruído nos mistérios da fé, e, o que
é capital, apontado a dedo pela vivacidade da sua inteligência.
Pergunto-lhe eu: - Ó Bernardo (assim se chamava) diz-me e
fala a verdade: estás contente com a tua servidão?
E dás graças a Deus que te arrancou às trevas
da cegueira gentílica e, uma vez trazido para o Brasil, quis
que servisses não a um dono secular, mas aos religiosos da
Companhia de Jesus, em cuja doutrina possas viver, imbuído
dos mistérios e da moral cristã, e ao morrer vás
para o céu? Com efeito, de outra forma, se tivesse permanecido
onde nasceste, irias para o inferno para ser torturado pelas chamas
eternas, como são torturados os teus antepassados que não
conheceram a Deus. Ele ficou perplexo e, erguendo um pouco as sobrancelhas,
respondeu intrepidamente e seguro de si: - Os meus avós e
os meus antepassados não estão no inferno. E, antes
que eu lhe perguntasse por quê, acrescentou: - Porque, se
eles não conheceram a Deus, como pudera Deus mandá-los
para o inferno? Ou como puderam eles ofender tanto a Deus, ignorando
que merecessem ser assim atormentados? Admirado da lógica
claríssima do inesperado teólogo negro, como que minimizando
e ridicularizando o que dissera, para o apanhar noutra armadilha,
insisti: - Na tua terra e entre esses gentios, os roubos, os adultérios,
os homicídios e outras coisas assim não são
consideradas más, injustas e contrárias à razão?
- Absolutamente- respondeu. Então digo-lhe eu: - Portanto,
se os vossos antepassados fossem desculpados do inferno porque não
conheceram a Deus, pelo menos seriam justissimamente castigados
com essas penas por causa desses crimes graves. - Esse -disse ele-
é outro motivo que, apesar de tudo, não me parece
suficiente para que as penas a que são condenados hajam de
ser eternas e sem fim. Na verdade, os brancos (assim chamam aos
portugueses por causa da diferença de cor), se matarem outro,
matam-no na forca, suplício que acaba em um momento. E, assim,
que perde o enforcado? A vida -sem dúvida. De fato, é
justo que quem privou outro da vida seja privado da vida, para que
haja uma compensação igual, e a pena seja equivalente
à culpa. Ora, nem a vida do assassinado nem a do assassino
haviam de durar perpetuamente. Portanto, como é que um homicida
que não conheceu a Deus deverá ser castigado por Deus
(e Deus de infinita misericórdia), não com um suplício
temporal e finito, mas com as perpétuas penas do inferno
que hão-de durar eternamente, para compensar uma vida mortal,
que não dura perpetuamente, da qual privou outra pessoa?
Fiquei quase estupefato ao ouvir o nosso Bernardo a filosofar com
tanta clareza sobre uma questão tão obscura, e com
essa conversa fui informado por uma criança, ainda não
adulta e pouco antes gentia, de que era como que conhecida pela
luz natural da razão aquela conclusão sobre a qual
os mais doutos dos nossos teólogos ainda se digladiam entre
si.
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profeta de luz
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