Vieira buscou fortalecer Portugal e possibilitar a expansão universal da fé

A exegese do capital

ALCIR PÉCORA
especial para a Folha

"Quanto mais, sobre as grandes notícias, que diz que tem da Escritura, e Santos Padres, persiste nas opiniões que eles rejeitam, por não deixarem com elas porta aberta à introdução de erros, e esperanças judaicas, como (ele declarante faz com) evidente perigo de se perverterem os Cristãos Católicos (e se confirmarem os Judeus em sua perfídia, e cegueira)."
"Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, 25º Exame"


A leitura seguida dos 30 autos do processo inquisitorial de Vieira (1) deixa claro, para mim, que o Tribunal do Santo Ofício de Coimbra acerta o alvo, quando afirma que o jesuíta quer conciliar o judaísmo, ou a admissão de algumas de suas práticas, com lugares das Escrituras restritos à exegese católica, com o fim de agradar ou favorecer sobretudo a expectativa dos judeus batizados. Poucos críticos posteriores de Vieira foram tão precisos.

É verdade que o Tribunal se equivoca ao supor nele qualquer intenção dúbia em relação à fé ou à Igreja Católica, o que é rigorosamente absurdo, tendo em vista a sua vida inteira dedicada às missões, a renovada obediência que prestou à Companhia, a imensa preocupação com a "missão cristã de Portugal" no mundo. Mesmo na matéria controvertida do Quinto Império, o futuro paraíso terreal cujo anúncio julga poder ler nas Escrituras, nada nela contraditou jamais a aceitação do governo espiritual do papa, fato que reconheceu a própria Inquisição portuguesa, em nova qualificação dada em 1729, de que foi relator Frei Teodósio da Cunha, dos Eremidas de Santo Agostinho (2).

Está perfeitamente evidente nos papéis de Vieira que não há "má tenção" constituída, nem há, como admite o 2º Assento do Santo Ofício, de 18 de outubro de 1667, que orientou a própria sentença condenatória, qualquer indício de prática de judaísmo de sua parte (3).

Contudo, o que querem as teses proféticas de Vieira, é resumidamente isso mesmo: ser tão atraentes para os cristãos novos, nas práticas do espírito, como fórmula de convivência com os católicos portugueses, quanto o poderia ser a isenção do confisco de seus bens, na matéria temporal. A afirmação profética do Quinto Império é parte essencial da argumentação de Vieira destinada a convencer os judeus de que deveriam retornar a Portugal e aqui empregar o seu capital, pois apenas a este Estado estava destinado um papel compatível com o futuro previsto por sua crença.

Assim, Vieira concilia a vinda do Messias e a consequente reunião dos judeus dispersos com o aparecimento do Príncipe Encoberto português, fundador deste novo Império, espiritual e também temporal, que possibilitaria a recondução da "gente de nação" às suas terras.

As teses expostas na carta "Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo", dirigida à rainha d. Luísa de Gusmão, em abril de 1659, e depois esmiuçadas, refundidas, modificadas, mas sobretudo sutilizadas, ao longo do processo inquisitorial, agem sempre na mesmíssima direção. De resto, não é outro o propósito de sua ação sermonária: a criação de condições favoráveis ao fortalecimento de Portugal e à expansão universal da fé. E, para Vieira, o instrumento fundamental para reparar-se o "estado miserável" do Reino sempre era o capital judeu. Não pelo seu montante apenas, mas também pelo talento da "gente de nação" em empregá-lo. Já na "Proposta" que faz a d. João 4º, em julho de 1643, Vieira sugeria-lhe que:
"Se vossa magestade for servido de os favorecer e chamar, será Lisboa o maior imperio de riquezas, e crescerá brevissimamente todo o reino a grandissima opulencia (...)" (4).

E insistia sobre o gênio comercial único dos judeus:
"Emfim, senhor, Portugal não se póde conservar sem muito dinheiro, e para o haver, não ha meio mais efficaz, que o do commercio, e para o commercio não ha outros homens de igual cabedal e industria aos de nação" (5).

De fato, há algo de arraigadamente étnico na maneira de Vieira conceber o capital, ou o "dinheiro", termo que entende no interior da riquíssima semântica do "judeu". Por isso mesmo, nessa concepção, há muito de arcaico e estranho ao mundo burguês -diferentemente do que dizem os que gostam de pensá-lo como autor avant la lettre. A meu ver, engana-se também Carpeaux, que o pensa a partir de uma idéia de "transição", quando supõe que "o verdadeiro Encoberto do sebastianista Vieira seria o burguês" (6).

Para discordar disso, basta ver que Vieira jamais percebeu que o capital é surdíssimo à sereia sutil da teologia. E apenas quem jamais admitiu a autonomia das determinações econômicas, num mundo ainda sacramentado com a presença de Deus, julgaria poder convencer o capital a aplicar-se confiantemente, com o seguro exclusivo das especulações proféticas. Um seguro, aliás, cujo único fundo era, e é ainda, o gênio da língua -ou da lábia, como bem assinalava o próprio d. João 4º, diante das razões indisputáveis alegadas por seu valido.

Seja como for, os autos do processo inquisitorial deixam ver que a formulação profética fornece a sustentação teológica da assertiva política, ou, para ser mais preciso, acomoda aspectos importantes da crença judaica ao catolicismo a fim de que os judeus convençam-se do interesse de tornar a Portugal, e de que os portugueses, por sua vez, admitam o valor cristão e também político da convivência tolerante. Penso que, muito sinteticamente, a chave das profecias de Vieira molda-se a partir daí. Ele as fabrica com o mesmo tipo de convicção que argumenta sobre a conveniência da reforma nos "estilos" da Inquisição para obter o investimento de recursos da "gente de nação" no Estado falido.

Mas seria equivocado chamar a isso "ideologia", no sentido de "falsa consciência": não se trata de fantasiar um lado, o profético, para disfarçar ou dourar a pílula do outro, o econômico. Não fora a evidente e sincera crença na finalidade cristã possível dos empregos judaicos, é inconcebível que Vieira tomasse manifestamente o lugar do capital como objeto de uma exegese tão ousada, disputada segundo os procedimentos e lugares da própria tradição exegética. Ou, ainda mais, que aplicasse anos de sua vida, dois dos quais recluso em uma cela, a reclamar pena e tinta para elaborar explicações magnificamente complexas, às quais, contudo, não votasse valor algum.

Mas, bem ao contrário, Vieira julgava-as matéria digna de um Concílio inteiro! Além disso, é notório que bastaria abdicar delas para abreviar o processo inquisitorial e ver-se logo restituído ao beira-mar de que sua saúde parecia depender. E o jesuíta simplesmente não o faz, a despeito de todo o sangue que alega cuspir diariamente.

Vieira, sem dúvida, acreditava na alta qualidade teológica, não apenas política, de suas interpretações proféticas. Acreditava na Providência do dinheiro, no desígnio divino dos negócios. O capital de que fala não é o mesmo do burguês: longe do laico, é tão encoberto e sobrenatural quanto o seu Vice-Cristo ou a Eucaristia. As suas exegeses do futuro, assim, eram ato verdadeiramente beato de construção da sustentação teológica, necessária e inalienável do plano de fortalecimento do Estado católico moderno e da igreja romana. Com isso, buscava igualmente convencer o capital, como ele próprio estava convencido, de que o melhor caminho de sua aplicação passava pelo arruinado Portugal.

Por outro lado, pelo que se disse acima, vê-se como o Tribunal andava equivocado no tocante à atribuição de culpa de "maquiavelismo" a Vieira. O tour de force profético-econômico mostra suficientemente que ele participa da mentalidade, comum a ele e aos inquisidores, que não reconhecia uma razão autônoma ao governo, e ainda menos ao comércio ou ao dinheiro. Ora, as praças de França, Holanda e Inglaterra, às quais mais acorriam comércio e dinheiro, sabiam-se dispensar das distinções escolásticas para buscar modos próprios de multiplicar-se. Estavam bastante cientes das atrações efetivas do mercado que se firmava -não importa o que mais demonstrasse o engenho dos oradores.

Assim, o esforço de Vieira para especificar os distinguos teológicos, a sua crença infinita no poder de germinação da palavra cuja semente é Deus, os quais coexistem com um conhecimento apenas superficial das soluções produzidas pela economia, demonstra de sobejo a verdade não ambígua do seu catolicismo, contrário em quase tudo à "dupla verdade" presente no espírito do capitalismo.

Bem pesadas as coisas, a condenação sofrida pelas idéias de Vieira não tem a ver propriamente com um capítulo do fracasso ou da hesitação do avanço do espírito burguês na península. O jesuíta não é a consciência pré-iluminista barrada pelo obscurantismo inquisitorial, mas a consciência de um homem de fé militante que defende a hegemonia do Estado católico, e cuja estratégia passa pela acomodação das diferenças étnico-religiosas no seio da monarquia temporal.

A exegese do capital é, pois, parte essencial dessa estratégia, e, a rigor, tomado como matéria exegética, evidencia-se que "capital" é termo anacrônico à questão de Vieira. Nesse sentido, a sentença do Tribunal controlado por dominicanos revela, sobretudo, contradições internas ao catolicismo do final do 17, quando dispersa-se o espírito da unidade contra-reformista em disputas nacionais e paroquiais, e, além disso, já são muitas as dificuldades de se tomar um partido claro frente às tradições místicas e costumes variados com que se defronta, e pelos quais é obrigado a reinterpretar-se, desde que insista em seu caráter reformista e universalizante. E Vieira insiste.

Notas: 1. "Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição", edição, transcrição, glossário e notas de Adma Muhana, SP, Ed. Unesp/Fundação Cultural Estado da Bahia, 1995.
2. O documento está transcrito no artigo de Mário Nunes Costa, "Fr. Teodósio da Cunha, Qualificador do Pe. Antônio Vieira em 1729", in: "Arquivo de Bibliografia Portuguesa", Coimbra, 1 (2), 1955.
3. O primeiro atenuante da sentença aí relatado reza que "em todos esses autos, se não prova legitimamente contra o Réu, fazer ele, ou dizer coisa (alguma formalmente) herética, ou judaica, sobre que a suspeita, ou presunção acima dita de heresia, ou judaísmo (possam assentar)...". "Autos...", op. cit., pág. 442.
4. "Obras Inéditas", op. cit., referência à pág. 35 do segundo volume.
5. Idem, págs. 38-39.
6. "Aspectos Ideológicos do Padre Vieira", in: "Sobre Letras e Artes", org. de Alfredo Bosi, SP, Nova Alexandria, 1992. Citação à pág. 58.


Alcir Pécora é professor de teoria literária da Universidade de Campinas (Unicamp) e autor de "Teatro do Sacramento - A Unidade Teológico-retórico-política dos Sermões de Antônio Vieira" (Edusp).

 


 

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