Imagens em desordem

ANDRÉ AMARAL DE TORAL
especial para a Folha

As imagens da guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870) foram feitas por um mercado produtor que experimentava uma notável expansão e diversificação. A litografia, por meio da imprensa ilustrada, e a fotografia afirmavam-se desde 1850 como negócios lucrativos, atingindo um público que não tinha acesso, devido aos preços, a um daguerreótipo ou uma pintura.

A fotografia em papel gerou a "febre de retratos" do período e a moda de os soldados se fazerem fotografar. As vítimas do conflito, doravante, não seriam apenas números ou nomes.

Parentes e amigos poderiam dispor de imagens que traziam a lembrança viva dos custos da guerra. Até o imperador Pedro 2º, buscando identificar-se como o "Voluntário da Pátria nº 1", fez-se retratar, como outros oficiais, em uniforme militar. A imprensa ilustrada utilizava-se amplamente destes retratos, como referência à elaboração de suas litografias, homenageando os que lutavam no exterior.

A nação era representada não mais pelos grandes heróis do seu período constitutivo, nobres portugueses ou caciques indígenas, exaltados na literatura e nas pinturas históricas acadêmicas patrocinadas pelo Estado. Eram modestos soldados, oficiais quase adolescentes, ex-escravos e índios; era o vizinho da casa ao lado. Mesmo o inimigo, conhecido pelas fotos de prisioneiros, tinha, agora, um rosto, fisionomias sofridas que inspiravam mais piedade do que ódio.

A fotografia e a litografia acentuaram a "dor da memória" e introduziram uma "laicização" dos custos emblemáticos da guerra. As novas imagens mostravam o povo que morria num conflito impopular, deixando para trás a representação da nação por intermédio de seus heróis mitológicos. A guerra deixava de ser uma causa do governo e passava a ser um problema de todos, fazendo parte da construção de imagens de cidadania.

A litografia inaugurava a utilização da imagem no jornalismo, numa antecipação do fotojornalismo. Os jornais ilustrados, na época os meios de informação mais dinâmicos, eram um termômetro da opinião pública a respeito da guerra, posicionando-se geralmente com independência em relação à opinião governamental. A exceção, no caso, foi o Paraguai, onde todos os órgãos de imprensa eram oficiais, dedicando-se à propaganda "anti-Aliança", e o mais conhecido jornal ilustrado, o "Cabichuí", era uma publicação do Exército.

Diversos jornais mantinham correspondência com oficiais nas linhas de frente. Fotógrafos deslocavam-se para o front, acampando junto às tropas aliadas. Eram os primeiros correspondentes de guerra do continente.

No Brasil e Argentina, o apoio à guerra por parte da imprensa ilustrada e da opinião pública durou apenas um ano a partir das invasões paraguaias ao Brasil e à Argentina no final de 1864 e início de 1865. No final deste ano, e a partir de 1866, a guerra passou a ser criticada, num processo que culminaria com a derrota aliada em Curupaiti, em setembro desse mesmo ano. Cresceram, então, os apelos pela paz. Alguns jornais ilustrados cariocas, fundados em 1865, e exclusivamente dedicados ao bom negócio de imagens bélicas, soçobraram juntamente com a popularidade do conflito.

A série de vitórias militares sobre o Paraguai, iniciada com a passagem de Humaitá em fevereiro de 1868, quando Argentina e Uruguai praticamente já tinham se retirado do conflito, trouxe de volta o patriotismo à imprensa brasileira.

A fotografia e a imprensa ilustrada limitaram o papel da pintura como registro da guerra. A pintura, acadêmica ou não, produziu um número limitado de trabalhos, na sua maioria depois de 1870. As novas técnicas demonstraram o anacronismo da pintura acadêmica, que não tinha suficientes ligações mercadológicas que permitissem a continuidade do gênero histórico longe do mecenato oficial. Ironicamente, o grande pintor da guerra, o argentino Cándido López, vem de uma tradição marginal à pintura que recebia subsídios oficiais. O apoio exclusivo do governo brasileiro à pintura, como se esta fosse a única iconografia aceitável, consistia, no diversificado repertório técnico da época, uma escolha conservadora.

Diante da massa desordenada de informações visuais, a pintura acadêmica, como possibilidade de representação da nação, perdeu sua hegemonia. Extratos médios da população urbana, tecnicamente qualificados e politicamente excluídos, buscavam no Brasil formas de representatividade e cidadania no país real, longe das alegorias e idealizações classicistas ou românticas.
Afastando-se das telas de Vitor Meireles e dos poemas de José de Alencar, a tarefa que se impunha aos espíritos "progressistas" era levantar, cientificamente, os problemas nacionais. A fotografia e a litografia eram os meios que mais se aproximavam desse pretendido "realismo", convertido em paradigma de modernidade. A imagem se popularizava, nos parâmetros de produção e no consumo da época, e perdia parte de seu caráter oficial, que vinha desde a independência dos países do Cone Sul.


André Amaral de Toral é antropólogo, doutorando em história social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O texto acima faz parte de sua tese sobre a iconografia da Guerra do Paraguai.

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