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Fascismo
e revisionismo
GUIDO
RODRÍGUEZ ALCALÁ
especial para a Folha
Em 1957, o historiador paraguaio Benjamín Velilla pronunciou
uma conferência em Assunção em que discretamente
criticava a capacidade militar de Francisco Solano López. Não
faltavam razões a Velilla: nomeado general aos 18 anos por
seu pai, o presidente do Paraguai, López se autonomeou marechal
quando o sucedeu de forma dinástica e, ao estourar a guerra
da Tríplice Aliança (1864-1870), era a pessoa menos
indicada para conduzir um exército. Mas, sem que fossem ouvidos
seus argumentos, Velilla foi preso ao terminar sua conferência
e em seguida desterrado por decisão do general Alfredo Stroessner,
dono do país entre 1954 e 1989.
Aquela foi uma expressão prática do chamado revisionismo
histórico paraguaio, que transformou em questão de Estado
o culto a certas figuras históricas consideradas "heróis
da pátria" e que se constituiu em um ingrediente básico
da ideologia política de Stroessner, que tomava como agravo
pessoal as críticas a seus predecessores.
O revisionismo histórico é um produto tardio. Teria
sido inaceitável na época do fim da guerra da Tríplice
Aliança, quando os López eram tão odiados no
Paraguai como os Trujillo ou os Somoza em seus domínios. Os
testemunhos da época, escritos por paraguaios que tinham pertencido
aos círculos do governo (Juan Centurión, Silvestre Aveiro,
Isidoro Resquín, Fidel Maíz), incriminam López.
Seus autores tentam se justificar, negando responsabilidade pessoal
nas atrocidades do ditador (execuções em massa, campos
de concentração etc.).
No Paraguai, a história foi escrita pelos vencidos, e de forma
bastante desfavorável a López. Muitas décadas
após, os revisionistas paraguaios, que não tinham feito
a guerra, reivindicariam o tirano, alegando que a história
tinha sido escrita pelos vencedores (como os revisionistas alemães
de hoje), para desqualificar, dessa forma, qualquer evidência
contrária a suas preferências particulares.
O revisionismo paraguaio conseguiu reconhecimento oficial em 1936.
No dia 17 de fevereiro de 1936, um golpe militar levou à presidência
o coronel Rafael Franco, herói da guerra com a Bolívia
(1932-1935). O exército vitorioso se sentiu chamado a se converter
em árbitro político e o foi durante os 60 anos posteriores.
Dias depois do golpe, Franco declarou a um jornal de Assunção:
"Não é nova em mim a admiração pela
Alemanha e pelo brilhante caudilho de sua revolução,
o senhor Hitler, um dos valores morais mais puros do pós-guerra"
("Patria", 1º/3/36). E poucos dias depois (10 de março),
seu Decreto 152 identificou a revolução de fevereiro
com a fascista: "A Revolução Libertadora no Paraguai
se reveste da mesma índole das transformações
totalitárias da Europa contemporânea, no sentido de que
a Revolução Libertadora e o Estado já são
uma mesma coisa".
No entanto, Franco não foi um simples fascista: com ele chegaram
ao governo várias tendências políticas (amálgama
similar ao operado nos partidos de Juan Domingo Perón e Getúlio
Vargas). Um de seus ministros, Bernardino Caballero, propôs
recriar no Paraguai uma versão nacional-socialista dos nibelungos:
uma mitologia em que o marechal López seria Sigfried e Franco,
Hitler. Caballero era nazista, enquanto seu colega, o ministro Anselmo
Jover Peralta, era marxista.
À parte as discrepâncias, aquele governo oficializou
o culto aos heróis. Uma de suas primeiras medidas foi ditar
um decreto para absolver retroativamente o marechal López das
acusações que lhe tinham sido feitas por seus contemporâneos
no século passado. Também terminou a construção
do Panteão Nacional dos Heróis, para trasladar ao monumento
as cinzas do marechal, milagrosamente resgatadas de um túmulo
anônimo 66 anos depois. Nos atos de reivindicação
(palavra-chave do revisionismo), esteve presente Juan O'Leary, pontífice
revisionista, que aproveitou a oportunidade para declarar Franco sucessor
do marechal López, título honorífico que depois
outorgaria a outros presidentes, inclusive a Stroessner, que chegou
ao poder como solução bonapartista para um país
ainda convulsionado por causa da revolução de 1947.
A revolução foi uma reação justificada
contra a ditadura de Higinio Morínigo (1940-1948), devoto de
Hitler e de López. Morínigo a reprimiu com as armas
enviadas por Perón e o apoio do Partido Colorado, que se mantém
no governo desde então, ainda que não sem sobressaltos.
Entre junho de 1948 e novembro de 1949, ocuparam a presidência
cinco colorados, inclusive Natalício González, discípulo
dileto de O'Leary. González, admirador de Charles Maurras e
ocasional agente publicitário de Juan Vicente Gómez
e Benito Mussolini, enriqueceu a doutrina do mestre com certo indigenismo
racista então em voga. Em um artigo intitulado "Raízes
Guaraníticas de 'A Tempestade' de Shakespeare", acusou
o dramaturgo inglês de ter plagiado os índios guaranis.
Sua práxis política não foi menos temível:
com o lema "dentro de um ano não haverá um só
colorado pobre", ajudou a criar as condições que,
a longo prazo, facilitaram o surgimento de um Stroessner.
Aqueles que queriam agradar este último insistiam em seu parentesco
moral com os ditadores do século 19 (Francia e os dois López).
Num texto publicado em "El País" com o título
de "Uma Carta ao Presidente" (21/5/1959), O'Leary recomenda
"reverenciar o Pai, o Filho e o Espírito Santo de nossa
trindade patriótica: o doutor Francia, o Patriarca de nosso
progresso (Carlos López) e o mártir de Cerro Corá
(López filho)". E acrescenta, dirigindo-se a Stroessner:
"O senhor continue sendo, como já o é, o seguidor
da obra construtiva dos três grandes que forjaram a nacionalidade".
(Retribuição de favores: no dia 2 de março de
1955, O'Leary descerrou, numa praça central de Assunção,
o monumento que havia sido a ele erguido por Stroessner, e que ainda
existe.)
A identificação de Stroessner com "os três
grandes" foi moeda corrente da propaganda oficial. Para comprová-lo,
basta consultar as edições de "El País",
"Patria" e "La Voz del Coloradismo" (programa
de rádio) dos "dias pátrios" celebrados com
grande pompa: 3 de novembro (aniversário de Stroessner); 24
de julho (aniversário de López); 1º de março
(morte de López). Last but not least: em 1958, "El País"
iniciou uma campanha em favor do revisionismo, onde se destacam o
editorial de 12 de setembro ("Sobre o Revisionismo") e profusa
informação sobre a visita dos revisionistas argentinos
Atilio García Mellid e José María Rosa, cordialmente
recebidos pelo governo.
A ideologia revisionista exerceu poderosa influência sobre o
escritor Augusto Roa Bastos, como o prova seu artigo publicado no
jornal oficialista de Assunção, "La Unión",
no dia 7 de agosto de 1953: "Nosso Marechal de Ferro (López)
foi um homem autenticamente providencial... continua presidindo a
vida nacional junto com outros homens de nossa história autenticamente
providenciais como ele e continua reencarnando-se em seus descendentes
espirituais mais meritórios".
Para Roa Bastos, Stroessner e Perón eram reencarnações
de seu herói e por isso lhes dedicou o poema "Eternamente
Irmãos", publicado em "El País" de 20/8/1955:
"Stroessner e Perón selam seu abraço/ com a emoção
criadora dos homens/ que vencem o destino/ e agem na história
a golpes de verdades/ vivas como o hino dos homens. (...) O Marechal
de Ferro os recebe/ com suas mãos de povo e de bandeira/ e
lá em Cerro Corá,/ seu pedestal de pedra pulsa vivo/
como o eterno coração do Paraguai" (1).
O espírito revisionista não se limitou a conquistar
certas elites políticas e literárias. Por intermédio
de uma insistente propaganda, saturou a vida cotidiana de uma maneira
difícil de compreender para quem não haja vivido sob
a ditadura de Stroessner. Os nomes das ruas e das praças, os
monumentos e os cartazes, os programas de rádio e de televisão,
o cinema subvencionado pelo governo, os bilhetes de loteria, os produtos
e empresas comerciais de nomes patrióticos (por exemplo, "Cerro
Corá", "Primeiro de Março") transformaram
o passado em presente. Essa fixação no século
19 significou também a ausência da pesquisa histórica
científica. Coisa compreensível: o revisionismo de Stroessner
nem era histórico nem revisava nada; se limitava a repetir
os estereótipos de uma ideologia fascistóide.
Morto o cão, acabou a raiva. Com a queda de Stroessner, arrefeceu
o fervor revisionista. Agora se pode e se deve escrever a história.
Nota:
1. Uma consequência do poema foi o Decreto 10.152, de 27 de
janeiro de 1955, por meio do qual Stroessner atribuía "ao
senhor Augusto Roa Bastos a missão de estudar na Europa os
modernos métodos e meios de difusão e extensão
cultural e de propaganda".
Guido Rodríguez Alcalá é jornalista paraguaio;
trabalha no "ABC" (Assunção). Publicou "Caballero"
(Ed. Tchê!, Porto Alegre), sobre a guerra da Tríplice
Aliança, entre outros.
Tradução de Ricardo de Azevedo.
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