Em maio de 1498, o navegador Vasco da Gama aportava em Calicute, na Índia, reunindo num caminho inédito Ocidente e Oriente

O
homem que expandiu o mundo

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha


O economista e filósofo britânico Adam Smith (1723-1790), autor do clássico dos clássicos do capitalismo, "A Riqueza das Nações", afirmou que os dois acontecimentos mais importantes da história da humanidade tinham sido as descobertas da América, em 1492, e da rota marítima para as Índias em 1498 -nome que se dava então às terras banhadas pelo Oceano Índico, não apenas à Índia propriamente dita.

O comércio com o Oriente praticado pelos europeus fora prejudicado com a tomada em 1453 de Constantinopla pelos turcos, data que simboliza o fim da Idade Média e o começo da Moderna.

O objetivo das duas viagens era comerciar com o Oriente em busca de produtos valiosos na Europa, como sedas e especiarias, cujos preços eram influenciados pelos intermediários tanto muçulmanos como cristãos -árabes, persas, turcos e italianos (principalmente venezianos). Se fosse necessário, saqueava-se, pois comércio e pirataria ainda tinham muito em comum nessa época que os marxistas chamam de "acumulação primitiva do capital".

O genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) morreu achando que tinha chegado às Índias, como supõe a maior parte dos historiadores. Com isso, o continente que descobriu para os europeus terminou sendo batizado em homenagem a outro italiano, o florentino Américo Vespúcio (1454-1512).

Já o português Vasco da Gama (1469-1524) teve mais sorte que Colombo, apesar de também ter tido momentos em que perdeu as graças reais. Em 20 de maio de 1498 aportou em Calicute, na Índia, inaugurando o que hoje virou moda chamar de "globalização". Gama voltaria depois, se vingaria a ferro e fogo daquilo que considerou maus modos dos nativos e morreria como vice-rei das novas colônias que os portugueses ali estabeleceram.

As comemorações dos 500 anos da viagem de Colombo foram um misto de homenagens à sua coragem de navegador e à sua visão, que acrescentou um bom pedaço de conhecimento geográfico à humanidade, mas também de protestos pelo que aconteceria nesse meio milênio decorrido -massacre de indígenas, escravidão de negros etc.

Nesta próxima semana a história recente deverá se repetir. Nacionalistas portugueses prestarão homenagens a esse homem que também era um navegador corajoso e que para sempre juntou as duas metades do mundo. Já os nacionalistas indianos irão deplorar o início da pirataria ocidental em seu canto do mundo, a princípio por portugueses, depois por holandeses, ingleses e outros menos cotados.

A grande pergunta -o grande mistério, como já se escreveu- sempre foi tentar entender como foi possível a esse pequeno país nos confins ocidentais da cristandade iniciar a era das grandes navegações, e dominar o comércio no Oceano Índico no século seguinte à primeira viagem de Gama. Como costuma acontecer quando há esse tipo de dúvida, as respostas são variadas.

A historiografia foi fortemente influenciada por nacionalismos -tanto dos portugueses e quanto de seus rivais espanhóis e italianos-, que tiveram um papel importante no financiamento das descobertas e no desenvolvimento da tecnologia náutica.

Durante o longo período autoritário que foi a era salazarista em Portugal, de 1928 a 1974, as grandes navegações eram parte essencial da ideologia oficial, e foram uma justificativa da manutenção de um império colonial bem depois que os outros países europeus já os tinham abandonado.

Ironicamente, historiadores de países não diretamente envolvidos tenderam a ser mais neutros, mesmo levando-se em conta que são pesquisadores com um profundo interesse -que quase sempre se traduz também em afeição- por Portugal.

É o caso do britânico C.R. Boxer, sem dúvida um dos maiores especialistas em história colonial luso-brasileira. Ao se perguntar por que os portugueses tomaram a dianteira "numa empresa em que os mediterrânicos tinham falhado", Boxer argumenta que os motivos foram uma mistura de fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos.

Uma das vantagens de Portugal e Espanha fora a unificação nacional precoce e a existência de uma burguesia comercial aliada aos reis, capaz de incentivar e financiar as explorações em busca de oportunidades comerciais. Além de terem sido os primeiros Estados nacionais europeus a serem formados, também tinham uma posição geográfica privilegiada, que lhes facilitava realizar explorações pelo Atlântico.

A viagem de Colombo, financiada pelos espanhóis, despertou os portugueses da complacência; um dos seus resultados foi o famoso Tratado de Tordesilhas de 1494, que dividia as esferas de exploração dos dois países. A linha impediu graves disputas futuras. Passava pelo atual território brasileiro; e, no Oriente, resultou na possessão espanhola das Filipinas, impedindo porém a ação da Espanha na Índia.

Para Boxer, os quatro principais motivos que inspiraram os dirigentes portugueses -"reis, príncipes, nobres ou mercadores"- foram, em ordem cronológica, um zelo de cruzada contra os muçulmanos; o desejo de se apoderarem do ouro da Guiné; a questão do Preste João; e a procura das especiarias orientais.
O zelo de cruzada fazia parte da própria formação dos Estados cristãos da Península Ibérica, toda ela retomada aos poucos dos "mouros".

O ouro da Guiné foi o primeiro grande incentivo econômico da expansão lusa no norte da África e em direção sul, processo iniciado com a tomada de Ceuta, no Marrocos, em 1415, e impulsionado pela energia de um príncipe, o infante d. Henrique (1394-1460).

O Preste João era um mítico rei cristão do Oriente que os europeus zelosamente procuravam para servir de aliado contra os muçulmanos. Curiosamente, um Preste João foi achado, embora sem a magnificência e o poder que os europeus esperavam -o imperador cristão copta da Abissínia.

Ironicamente, Cristóvão da Gama, filho de Vasco, morreu em 1542 ao tentar auxiliar os cristãos etíopes (em vez de ser por eles auxiliado) contra os muçulmanos. Cristóvão tinha como bandeira a cruz da Ordem de Cristo, a mesma que aparecia nas velas das caravelas e naus portuguesas. Tratava-se da grande instituição financiadora das descobertas, criada em 1319 e herdeira do espírito cruzado da Ordem dos Templários.

Como lembrou o historiador americano George Winius, foi um gesto nobre de espírito de cruzada, pois ao contrário dos cruzados, que na Idade Média estavam mais interessados em conquistar territórios na Terra Santa, as tropas de Cristóvão -no final vitoriosas, apesar da morte do líder- estavam apenas empenhadas em ajudar outros cristãos.

Já a procura pelas especiarias orientais tinha sido o principal motor das viagens de Colombo e Gama -embora os relatos digam que, ao serem perguntados o que estavam fazendo ali em Calicute, a resposta dos portugueses tenha sido: "Buscamos cristãos e especiarias".

Os primeiros tempos das navegações tiveram uma série de cronistas ilustres que constituem a base das informações disponíveis. São autores clássicos, como Gomes Eanes de Zurara, Garcia de Resende, Fernão Lopes de Castanheda, Gaspar Correia, João de Barros, Diogo do Couto e Damião de Góis. E, como não poderia deixar de ser, Luís de Camões, autor da obra fundamental da literatura portuguesa, "Os Lusíadas".

Bartolomeu Dias (?-1500) descobrira em 1488 o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, o que indicava que o caminho por mar às Índias era possível.

Além de Dias, o rei português d. João 2º mandou em 1487 ao Oriente, por terra, um verdadeiro "James Bond": Pero da Covilhã, que falava árabe e castelhano fluentemente. Covilhã visitou a costa oriental africana e a Índia, mas há dúvidas de que sua carta relatando o que viu tenha chegado ao rei. Covilhã morreu na Abissínia sem poder retornar a Portugal.

Há relatos árabes que indicam que antes de Gama navegadores portugueses haviam naufragado em Sofala, Moçambique, supostamente a caminho da Índia, em 1495. Os relatos seriam obra de Ibn Madjid, o piloto árabe que depois guiaria Gama seguramente da costa africana até Calicute.

Gama usou uma rota atlântica bem mais eficiente no aproveitamento dos ventos e correntes daquela usada por Dias, que foi acompanhando o litoral africano de perto. Gama foi bem para oeste, passando pelo meio do Atlântico, o que pareceria indicar um conhecimento prévio do caminho. Mas isso também ajuda a explicar por que Pedro Álvares Cabral, querendo chegar à Índia com a frota imediatamente posterior à esquadra de Gama, poderia ter topado por acaso com a Bahia em 1500.

A viagem de Gama foi sacrificada. Partiram de Lisboa em julho de 1497 quatro navios (duas naus, uma caravela e um barco com suprimentos), com 160 homens. Gama volta a Portugal em fins de agosto de 1499 com apenas um navio. O outro navio sobrevivente, comandado por Nicolau Coelho, voltara pouco antes. Metade da tripulação morrera na viagem, incluindo o irmão de Vasco, Paulo da Gama.

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