|
Biógrafo
indiano de Vasco da Gama explica como navegador serviu à
propaganda nacionalista
Um
mito português
JEAN
MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha
Sanjay
Subrahmanyam, 37, nascido em Nova Deli, lecionou nas universidades
de Filadélfia, de Minneapolis, de Lisboa e de Deli. Atualmente
encontra-se em Paris, na École des Hautes Études en
Sciences Sociales. Depois de publicar, em 1993, um exaustivo estudo
sobre a presença portuguesa no sul da Índia ("O
Império Português na Asia, 1500-1700", Difel,
1996), o historiador, no início do ano passado, lançou
uma polêmica e muito comentada biografia do navegador Vasco
da Gama ("The Career and Legend of Vasco da Gama", Cambridge
University Press, leia à respeito na pág. 5-6). Na
entrevista que se segue, concedida à Folha por e-mail, Subrahmanyam
dá a conhecer um pouco desse seu trabalho.
Folha
- De que maneira o seu livro aborda a relação entre
a vida de Vasco da Gama e o contexto histórico no qual ela
se insere?
Sanjay Subrahmanyam - Sabemos pouco da vida de Vasco da Gama.
Os documentos são escassos e parece-me quase impossível
fazer uma verdadeira biografia no sentido vulgar. Era necessário
por causa disso recorrer muito ao contexto, mas devo dizer também
que sou historiador e não me sinto capaz de escrever uma
biografia como faria um profissional de biografias. O livro de Geneviève
Bouchon tenta fazer essa biografia, mas, como se vê, a sua
única saída foi escrever uma espécie de romance.
Uma editora francesa disse-me que não queria publicar o meu
livro em francês, pois não era uma biografia. É
verdade. Mas ao mesmo tempo, parecia-me pouco útil dizer
-como faz Jacques Le Goff no seu livro "Saint Louis":
"Vasco da Gama, a-t-il existé?" (Vasco da Gama,
ele existiu?). Com certeza, não há no meu livro um
retrato psicológico complexo, e o homem é sempre visto
no contexto, sobretudo no contexto político.
Folha - Seu livro analisa em detalhes a construção
do mito Vasco da Gama. Quais são os pilares desse mito? Em
que conjuntura ou conjunturas históricas essa construção
teve lugar?
Subrahmanyam - Há vários mitos, e os mais recentes
utilizam em parte (mas só em parte) os mais antigos. A minha
idéia é que já a propaganda manuelina utiliza
Vasco da Gama como contrapeso do mito de Colombo e que o próprio
Vasco da Gama utiliza em seguida o seu mito contra d. Manuel. As
crônicas do século 16, a partir de meados do mesmo
século, contribuem de uma maneira clara para a criação
do mito. A família dos Gama também participa nessa
criação e parece evidente que, a partir de "Os
Lusíadas", o mito ganha uma dimensão e um estatuto
enormes em Portugal. Há quem diga que, durante o período
filipino em Portugal, a figura foi utilizada na parenética
e nas pregações anti-espanholas. Talvez, não
tenho certeza. Em seguida, temos toda uma série de poetas
e de autores do século 18 que escreve utilizando no essencial
o Gama de Camões.
No século 19 temos a reinvenção do Gama, mais
uma vez com base em "Os Lusíadas", mas também
para mostrar aos outros europeus que o pequeno Portugal tem uma
grande envergadura, tem os seus heróis iguais a quaisquer
da Inglaterra ou da França. Não são Isaac Newton
ou Jean-Jacques Rousseau, não são heróis do
pensamento, mas verdadeiros heróis de ação.
É curioso ver que no século 16 era muito mais possível
criticar Vasco da Gama que no século 19.
Folha - Em seu livro, o sr. dedica um substantivo espaço
à análise da Ordem Militar de Santiago. Em linhas
gerais, que papel teve essa ordem na vida de Vasco da Gama?
Subrahmanyam - A Ordem de Santiago tinha um papel secundário
em relação à Ordem de Cristo, cuja ação
é muito mais conhecida por causa do Infante d. Henrique.
Mas, nos finais do século 15 e inícios do século
16, a relação entre as duas é muito complexa.
No final de contas, a Ordem de Santiago parece uma espécie
de contrapeso, ainda que fraco, à Ordem de Cristo. Mais tarde,
em meados do século 16, as duas ordens perdem a autonomia
e são integradas no funcionamento da coroa.
Na primeira parte da carreira, Gama foi estreitamente ligado à
Ordem de Santiago, tal como o seu pai antes dele. A partir de 1506
ou 1507, afasta-se da ordem e tem conflitos com o seu mestre, d.
Jorge, filho bastardo de d. João 2º. A meu ver, esse
processo está relacionado com o fato de Gama buscar uma carreira
menos marginalizada e mais integrada na corte. Mas teve pouco sucesso
nessa tentativa.
Folha - A chamada expansão marítima, especialmente
a aventura rumo ao oceano Índico, era uma questão
consensual dentro da corte portuguesa ou, ao contrário, era
um tema que suscitava polêmicas e divisões?
Subrahmanyam - Evidente que havia divisões, o que
foi mostrado primeiro por Jean Aubin e depois por Luís Filipe
Thomaz. E, antes deles, foi comentado em breve por Alexandre Lobato.
Em termos gerais, há grupos que têm concepções
políticas opostas quanto ao comercio da coroa, quanto à
idéia da reconquista de Jerusalém, quanto à
presença na África do Norte etc. E, de fato, uma das
funções dos grandes mitos seria de criar a ilusão
de um acordo para esconder a divisão na própria elite.
Na historiografia portuguesa, muitas vezes a expansão aparece
como uma ação coletiva, em que todos participaram.
Alguns neomarxistas insistem em que a expansão está
associada à luta de classes, à ascensão social
etc. Mas, de fato, a luta dentro de uma classe é também
um fator a tomar em conta.
Folha - A que razões o sr. atribui o sucesso dos
lusitanos na condução dessa aventura? A tese das expedições
secretas pelo Atlântico, algumas das quais conduzidas pelo
próprio Vasco da Gama, merece algum crédito?
Subrahmanyam - A idéia das expedições
secretas (ou desconhecidas) no Atlântico não me parece
totalmente inacreditável. Mas, no caso do oceano Índico,
parece absurdo. E o papel de Gama nisso é pura fantasia de
Armando Cortesão. É sempre difícil mostrar
que uma coisa não aconteceu. Eis a vantagem dos argumentos
"ex silentio".
Folha - A certa altura, o sr. fala de um confronto, no interior
da corte portuguesa, entre os partidários de uma visão
messiânica e os defensores de uma visão mais pragmática
dos descobrimentos. A presença portuguesa no Índico
refletiu essa divisão? Qual a posição de Vasco
da Gama no conflito?
Subrahmanyam - Os partidários duma visão messiânica
são essencialmente as pessoas próximas ao rei d. Manuel,
isto é, Duarte Galvão e em certa medida d. Martinho
de Castelo-Branco, o vedor da fazenda, e mais tarde o genro de Duarte
Galvão, Duarte Pacheco Pereira. Também Afonso de Albuquerque,
como se depreende claramente de suas cartas, pertence a esse grupo.
Vasco da Gama, pelo contrário, está muito mais ligado
a d. Francisco de Almeida e a um outro vedor da fazenda, o barão
de Alvito. São gente mais pragmática, mas nem por
isso mais capaz de perceber as realidades do Índico na época.
Em geral, como foi mostrado por Luís Filipe Thomaz, há
uma alternância no Índico entre governadores portugueses
dum lado e do outro, com certas exceções mais complicadas,
como Diogo Lopes de Sequeira (1518-1521).
Folha - A terceira viagem de Vasco da Gama à Índia,
então na qualidade de vice-rei, é descrita pelo sr.
como o coroar de uma carreira. Gostaria que o sr. comentasse como
se deu essa volta gloriosa do navegador e como foi a sua curta atuação
no cargo de vice-rei?
Subrahmanyam - Não posso utilizar frases como "volta
gloriosa" sem sorrir. É preciso uma certa ironia para
tratar com esses processos. É o coroar duma carreira do ponto
de vista do próprio Gama, quando vai tentar fazer funcionar
a sua própria concepção das coisas. Concepção
segundo a qual era necessário reduzir o número de
fortalezas, reduzir o Estado da Índia a um punhado de centros
-Goa, Cochim e pouco mais-, deixando o resto nas mãos de
particulares, sobretudo na mão de membros da nobreza portuguesa,
capazes de comerciar no Oceano Índico. Mas parece evidente
que não era possível guardar a concepção
na forma pura, já que existia a ameaça dos castelhanos
(a expedição de Fernão de Magalhães
às Molucas), e dos otomanos. Como resolver isso? Vasco da
Gama não resolveu nada; morreu três meses após
a sua chegada ao Índico. Os sucessores resolveram o problema
de outra maneira, guardaram as fortalezas quase todas (com duas
ou três exceções menores) e até promoveram
(na época de Nuno da Cunha) uma expansão do Estado.
Folha - A presença portuguesa na Índia, especialmente
em Goa, quando comparada à presença de outras nações
européias na região, tem alguma peculiaridade digna
de destaque? Os "brandos costumes" que os portugueses
dizem ter agiram em prol de uma melhor integração
com os povos nativos? Como o sr. avalia o contributo dessa presença
para esses povos?
Subrahmanyam - Esta pergunta é muito complicada e
de fato as diferenças são muitas e muito complexas.
Não há uma presença portuguesa, mas várias
presenças, porque os portugueses ficaram lá durante
quatro séculos e meio. Existe, como consequência, uma
verdadeira aculturação, num campo de poder bem desigual,
sem sombra de dúvida. Mas essa presença não
se compara, seja nas dimensões, seja nos processos sociais
subjacentes, à presença britânica na India.
Não me parece interessante dizer que estes eram melhores
que aqueles: não podemos dar notas num curso de imperialismo.
Folha - Seu livro é permeado de críticas à
historiografia portuguesa, nomeadamente ao excessivo nacionalismo
que marca as análises da expansão marítima
e dos seus heróis. Que prejuízos esse nacionalismo
trouxe, se é que trouxe, para a historiografia dos descobrimentos?
Subrahmanyam - Não me parece verdade que o livro seja
permeado de críticas desse gênero. Há, sim,
algumas críticas, às vezes dirigidas às vacas
sagradas dessa historiografia, tal como o Vitorino Magalhães
Godinho. O fato é que a historiografia dos Descobrimentos
é, quase por natureza e função, nacionalista.
Entre os historiadores portugueses que trabalham com o assunto,
quem utilizou outros arquivos, outras fontes, tentou ver com outros
óculos? Alguns, mas poucos. O curioso é que são
pessoas da esquerda que escrevem e raciocinam dessa maneira: tal
o caso de Godinho, que contou umas bobagens sobre meu livro a uma
revista portuguesa, porque não era capaz de responder sobre
o conteúdo científico. Mas, felizmente, há
uma nova geração em Portugal que tentou ultrapassar
em grande medida esse tipo de visão. Mas ainda se pode ler
numa biografia recente de d. Francisco de Almeida que era vergonha
nacional que ele fosse assassinado por uns selvagens nus na costa
da África ...
Folha - A chegada de Vasco da Gama a Calicute deve ser comemorada
pelos indianos? Como o sr. vê as manifestações
que tiveram lugar no seu país contra essas comemorações?
Subrahmanyam - Vai ser comemorada, mas não celebrada.
De fato, há grupos ultranacionalistas na Índia que
vêem toda tentativa de falar de Vasco da Gama como uma forma
de neo-imperialismo. Em Portugal, por sua vez, há grupos
que dão razão a esses receios. Nesse país sobrevive,
em parte, inclusive entre membros do governo, um discurso muito
nacionalista (nós, os portugueses, que somos os melhores
do mundo, que descobrimos tudo etc.). Mas há igualmente pessoas
mais razoáveis, entre as quais o próprio diretor da
Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, Antônio Manuel Hespanha, que é
um bom historiador e também uma pessoa aberta a toda opinião
razoável. Vou assistir neste mês a um colóquio
em Calicute e Cochim, e sei que, nessa mesma ocasião, haverá
uma manifestação muito politizada para condenar todos
os imperialistas, começando com Gama e acabando com o Banco
Mundial! Quanto a isso, o que dizer? Numa democracia, até
os malucos têm o direito de se exprimir (a condição
é que não seja de uma maneira violenta).
Jean Marcel Carvalho França é mestre em sociologia
da cultura, doutor em literatura comparada e autor de "O Rio
de Janeiro sob a Ótica dos Viajantes" (no prelo).
Leia
mais: A
gama de Camões
|
|