Movimento "Brasil: Outros 500" pretende reunir no dia 22, no litoral da Bahia, mais de 2.000 representantes de 200 etnias conhecidas em manifestação em defesa da causa indígena e contra a "invasão européia"

(10/4/2000)

Índios realizam marcha inédita
para contestar o Descobrimento

WILLIAM FRANÇA
da Sucursal de Brasília

Os índios brasileiros decidiram ficar de fora dos festejos oficiais dos 500 anos. O governo promove uma festa de Estado, com a presença de autoridades estrangeiras, e os índios lamentam o que chamam de "invasão européia".

Num movimento tido como inédito no país, por sua abrangência e poder de mobilização, desde o dia 4 foi iniciada a "Marcha Indígena 2000".

O movimento quer reunir no dia 22, numa grande conferência, em Porto Seguro, mais de 2.000 índios representando cerca de 200 etnias identificadas no país.

"Brasil: Outros 500", como foi denominado o movimento, vai chamar a atenção da sociedade para a causa indígena e contestar a versão oficial do Descobrimento.

"Para os povos indígenas, a conquista da América não foi o começo de sua história. Eles chegaram a este continente há aproximadamente 40 mil anos", afirma o manifesto que embasa o movimento.

"Naquele dia (22 de abril de 1500) foi dado início à expansão do Velho Mundo nestas terras, por meio da brutalidade letal e organizada", diz o texto.

Para comprovar os argumentos, o movimento afirma que, quando da chegada dos portugueses, havia 5 milhões de índios no país, que pertenciam a 970 diferentes povos -hoje são apenas 330 mil índios aproximadamente, de 215 etnias.

"Os índios não têm nada a comemorar, mas muito a refletir", afirmou à Folha d. Franco Masserdotti, bispo de Balsas (MA) e presidente do Conselho Indigenista Missionário, órgão anexo à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e uma das 20 entidades que estão desde dezembro de 1998 concebendo a marcha e a conferência.

"O governo deve considerar esse momento como um alerta, para tomar vergonha e assumir suas responsabilidades e deveres em relação às questões sociais", afirmou Maninha Xukuru, uma das organizadoras da marcha.

"Passaremos outros 500 anos, se preciso for, dizendo a verdade e corrigindo a história."

Reivindicações
A programação dos índios é ampla e abrange também outras minorias sociais, como negros e sem-terra. Com a marcha, iniciada na Amazônia (onde vivem 51% dos indígenas do país), eles pretendem chamar a atenção das diversas localidades por onde passarão dizendo que "os índios continuam sendo explorados e excluídos".

Darão como um exemplo a questão da terra. Das 558 terras indígenas do país, apenas pouco mais da metade (309 áreas, ou 56% do total) estão registradas. Ou seja: apenas os habitantes dessas terras têm assegurada a posse permanente, restando ainda 249 terras por homologar, demarcar, delimitar ou identificar.

Ao passarem por Brasília, na próxima quinta-feira, dia 13, também reclamarão que o Estatuto das Sociedades Indígenas, que regulamentará os direitos dos índios, está parado há cinco anos no Congresso. E que por mais tempo eles estão aguardando a ratificação da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que dá garantias às populações diferenciadas.

Na capital federal, tentarão se encontrar com o presidente Fernando Henrique Cardoso. É quase certo que serão recebidos pelo ministro da Justiça, José Carlos Dias. Ele cancelou a viagem que faria à Áustria para acompanhar de perto a manifestação. Ao chegarem a Porto Seguro, após 14 dias de manifestações e de atos públicos - completando o que batizaram de "a rota da intrusão do país ao contrário", do interior para o local do Descobrimento-, os índios vão se reunir numa grande conferência, na qual pretendem aprovar um documento a ser encaminhado ao governo, ainda em Porto Seguro, com as principais reivindicações e posições políticas.

"Será a primeira vez que os povos indígenas se sentam para eles mesmos discutirem seus problemas, sem serem convocados por entidades ou pelo governo", afirmou José Adalberto Macuxi, da Comissão Indígena de Roraima e representante da área indígena Raposa Serra do Sol, uma das que aguardam a homologação.

Outro lado
A Funai (Fundação Nacional do Índio), ligada ao Ministério da Justiça, assiste de longe a movimentação, mas, segundo seu presidente, Carlos Marés, a autarquia "vê com bons olhos e muita simpatia o movimento".

"A Funai tem a obrigação de estar com os índios reivindicando os direitos indígenas", afirmou Marés.

As propostas da marcha e da conferência são elogiadas por Marés, um advogado que ocupa há cinco meses a presidência da Funai. "Pela primeira vez há uma mobilização nacional dos povos indígenas. As poucas tentativas anteriores foram frustradas. Além disso, os índios estão certos ao dizer que não têm o que comemorar, de reclamar mais políticas públicas", afirmou.

O governo tem pronto um pacote com 15 terras demarcadas para serem homologadas. Contrariando as expectativas, não há, no entanto, até o momento, uma data definida para o anúncio do pacote.

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