Texto que será debatido pela CNBB coloca a hierarquia católica como co-responsável por tornar país desigual e violento

(20/03/2000)

Igreja quer pedir perdão pelo presente

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

A Igreja Católica no Brasil se sente "co-responsável" pelas "falhas" da sociedade contemporânea, que tornam o país desigual, discriminatório e violento. Para se penitenciar, pretende pedir desculpas em público não apenas por "erros do passado", mas também por "faltas do presente".

A intenção está expressa numa carta de 21 páginas que circula desde o começo de março entre os 406 bispos que compõem o episcopado brasileiro. A Folha conseguiu uma cópia do documento, guardado sob sigilo.

O clero não o divulga oficialmente porque se trata ainda de um anteprojeto. Composto de 86 itens, o texto norteará as discussões da próxima assembléia geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que irá ocorrer a partir do dia 26 de abril em Porto Seguro (BA).

Da reunião, prevista para terminar dia 3 de maio, sairá a versão definitiva do documento, que poderá conter alterações substanciais. O texto final apresentará uma análise dos 500 anos de evangelização. Será uma espécie de balanço, em que o episcopado apontará os efeitos positivos e negativos do catolicismo sobre o país.

A igreja já anunciara que, na "mensagem de Porto Seguro", pedirá perdão pelos abusos cometidos contra os índios durante o período colonial, quando tentava catequizá-los -processo que acabou por desrespeitar e demonizar a cultura nativa. Já dissera, igualmente, que aproveitará a assembléia geral para reconhecer o quanto se omitiu no combate à escravização dos negros.

O anteprojeto faz, de fato, tal "mea culpa". Oferece, porém, um dado novo: reserva 11 páginas para rever o país de hoje e colocar a igreja como cúmplice das mazelas cotidianas "de nossa sociedade". Olhando o passado e o presente, pede perdão "a Deus e aos irmãos ofendidos, na convicção de que os 500 anos do Brasil serão celebrados muito melhor com o compromisso de transformar nossos atos do que com a retórica do ufanismo".

Uma comissão designada pela presidência da CNBB escreveu a carta provisória. Entre os seis redatores, há três bispos (d. Marcelo Carvalheira, d. Luciano Mendes de Almeida e d. Aloísio Lorscheider) e três padres (Mário França de Miranda, Alberto Antoniazzi e Manoel Godoy). Todos se ligam à chamada ala progressista do clero -aquela que vê o cristianismo também como um caminho para a justiça social.

Os pedidos de perdão que a CNBB lançará na Bahia estão em sintonia com as orientações de João Paulo 2º. Por ocasião dos 2.000 da igreja, o papa vem convidando os católicos a um exame de consciência coletivo e à purificação da memória.

Individualismo
Quando se debruça sobre o cenário atual, o anteprojeto assume um tom militante, o que certamente desagradará bispos mais conservadores.

O texto afirma que, com a redemocratização da década de 80, o Brasil poderia ter superado um modelo econômico que favorece "o luxo e o esbanjamento de uma minoria". No entanto, deu-se justamente o contrário: "aumentou a distância entre o povo e a classe política", as desigualdades cresceram e o Estado se distanciou "dos cidadãos", revelando-se incapaz de "garantir a segurança contra a violência e as agressões". A mídia valeu-se do vácuo e ficou cada vez mais poderosa, "particularmente a televisão".

A carta avalia, ainda, que se instalou no país "uma mentalidade individualista hegemônica, aliada ao culto da eficiência e da produtividade". O fenômeno transformou "a preocupação de ganhar dinheiro em valor supremo" e provocou "o enfraquecimento da ética no exercício das profissões e na gestão dos recursos públicos".


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