Das 724 áreas identificadas pelo governo federal, em que vivem 81 mil pessoas, só cinco comunidades receberam até hoje o título de posse da terra

(12/3/2000)

Remanescentes de quilombos
ainda esperam pela terra


DANIELA NAHASS
enviada especial a Nossa Senhora do Livramento (MT)


Quatrocentos e sessenta e quatro anos após o primeiro registro de escravos africanos no Brasil e 111 anos depois da abolição da escravidão, o Estado brasileiro está reconhecendo pela primeira vez na história do país o direito à terra aos descendentes de escravos que fundaram quilombos.

O reconhecimento é lento, apesar de regulamentado na Constituição de 1988. Em mais de 11 anos, das 724 áreas identificadas como remanescentes de quilombos, apenas 31 foram reconhecidas e somente cinco receberam o título definitivo da terra: Curiaú (AP), Mangal (BA), Campinho da Independência (RJ), Itamaoari (PA) e Barra e Bananal/Riacho das Pedras (BA).

De acordo com dados da Fundação Palmares, existem 80.998 descendentes de quilombolas (moradores de quilombos) vivendo nessas áreas, em quase todos os Estados brasileiros. A maior concentração está na Bahia, onde foram identificadas 245 comunidades. No Maranhão existem 172 e em Minas, 69.

Em dezembro do ano passado, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou uma portaria delegando à Fundação Cultural Palmares (criada em 1988 e ligada ao Ministério da Cultura) a responsabilidade de reconhecer e titular definitivamente as terras de remanescentes de quilombos.

Segundo o artigo 68 da Constituição, "cabe aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras o reconhecimento da propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos". Apesar da lei, pouco foi feito para devolver as terras aos descendentes dos quilombolas.

Até a assinatura da portaria, a identificação dessas áreas ficava a cargo do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A presidente da Fundação Palmares, Dulce Pereira, disse que existe uma diferença conceitual no processo de reconhecimento das terras de quilombolas. O Incra é responsável por assentamentos. Para Dulce, isso não se adequaria aos casos dos remanescentes de quilombo. "Como é que se vai assentar quem já está na terra há 300 anos?", pergunta.

Dulce afirma que o trabalho para reconhecer uma área remanescente de quilombo depende de pesquisas históricas e antropológicas, atribuições para as quais o Incra não estava capacitado.

Nos movimentos negros, a avaliação era que, dentro da política de
reforma agrária do Incra, o reconhecimento de áreas remanescentes de quilombo era considerado como "o primo pobre".

Dulce Pereira aponta dois motivos para a "mudança" de visão dentro do
governo: a pressão dos movimentos negros e a preocupação do presidente e da primeira-dama Ruth Cardoso com a questão. A Folha apurou que o governo também foi pressionado pela própria Fundação Palmares, que começou a trabalhar no reconhecimento das terras antes mesmo de ter a atribuição legal com o objetivo de criar jurisprudência.

Para Dulce Pereira, o reconhecimento das terras e a concessão do título aos descendentes "é o momento que abre a possibilidade de inclusão do negro na sociedade brasileira". Para este ano, a previsão do orçamento da Fundação para o reconhecimento de áreas remanescentes é de R$ 1 milhão, o que daria para titular cerca de 20 comunidades.

Logo após a abolição da escravidão (1888), a situação dos negros continuou precária. Sem uma política do Estado para integrá-los à sociedade, muitos passaram a levar uma vida miserável.

Em "Da Senzala à Colônia", a historiadora Emília Viotti da Costa descreve: "Alguns empregavam-se em outras fazendas e passaram a constituir uma população móvel, flutuante, caracterizada pela instabilidade. Outros aglomeraram-se nos núcleos urbanos, vivendo de expedientes, morando em choças e casebres nos arredores das cidades, dando origem a uma população de "favelados", sem ocupação definitiva."

Leia mais: Marco português de 1501 vira objeto de culto milagroso no RN

Leia mais:

Igreja cobra taxa na região onde bispo Sardinha foi devorado

Igreja quer pedir perdão pelo presente

Historiadores e aventureiros disputam sobra de naufrágios

Remanescentes de quilombos ainda esperam pela terra

Marco português de 1501 vira objeto de culto milagroso no RN

Celebração do Descobrimento muda cotidiano dos pataxós

Paraná guarda últimos trechos da estrada indígena que cortava a América do Sul

Xavantes montam "embaixada" em São Paulo

Viagem leva quase dois dias

Índios realizam marcha inédita para contestar o Descobrimento

Governo tenta impedir atos contra FHC

Líder aponta "contradição" nos festejos

Sem-terra ameaçam descumprir acordo

Índios fazem manifestações com MST