População de Pedra Grande pede volta do monumento, transferido para Natal para evitar a retirada de lascas utilizadas em chá "curativo"

(7/3/2000)

Marco português de 1501 vira
objeto de culto milagroso no RN


FÁBIO GUIBU
da Agência Folha, em Pedra Grande


Um marco de pedra fincado em 1501 por navegantes portugueses no litoral do Rio Grande do Norte é hoje cultuado como objeto sagrado por comunidades da região de Pedra Grande.

Considerado o mais antigo monumento preservado do Brasil, o padrão -como é chamado esse tipo de marco- foi deixado em solo potiguar para atestar o direito de posse de Portugal sobre a terra recém-descoberta.

A pedra, em forma de coluna, com 1,62 m de altura e 32,5 cm de largura, possui em uma de suas faces a cruz da Ordem de Cristo e o escudo português esculpidos em relevo. O monumento, hoje exposto no forte dos Reis Magos, em Natal, é cultuado como algo capaz de realizar milagres.

O culto à pedra resistiu ao tempo e, ainda hoje, o padrão, conhecido pelos devotos como "Santo Cruzeiro", é considerado por eles uma "obra divina da natureza".

Uma espécie de altar, um cemitério e uma capela foram erguidos ao seu redor. Braços, pernas e cabeças de madeira são depositados no local por romeiros como agradecimento pelas "curas".

Os devotos atribuem poderes medicinais a um chá feito com lascas retiradas do marco. Graças a essa crença, a pedra foi cavada, em alguns pontos, em até 5 cm dos 25 cm de sua espessura original. A devoção ao padrão resultou, na década de 60, em uma campanha em favor da transferência do monumento para Natal.

Em 1962, o monumento, batizado oficialmente de Marco de Touros, foi tombado pelo Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Várias tentativas de transferência foram feitas, mas a população da região resistiu, armada de paus e facões.

No final dos anos 60, no auge do que já consideravam uma "guerra santa", os moradores esconderam o monumento por seis meses no morro dos Martins. Durante o trajeto, o padrão se partiu próximo à base.

"Desde então, os devotos, num fanatismo cada vez maior, acreditavam que a "pedra santa", depois de bipartida, ficara com maiores poderes milagreiros, recrudescendo o uso das chávenas com lascas da pedra (...)", escreveu Oswaldo de Souza, diretor do Sphan.

Só em 1975 o Sphan conseguiu transferir o padrão para Natal, com a ajuda da polícia. No lugar do original, deixou uma réplica feita de cimento. As romarias acabaram. "Essa pedra não vale nada, porque foi feita pela mão do homem", disse o agricultor Francisco Tenório, 70.

Há dois anos, as Prefeituras de São Miguel do Gostoso e de Pedra Grande organizaram manifestações reivindicando o retorno do monumento ao seu lugar de origem. Um novo ato está marcado para 22 de abril próximo, quando se comemoram os 500 anos do Descobrimento.

A atual diretora do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em Natal, Jeanne Nesi, diz que apóia a volta do marco, desde que seja garantida proteção ao patrimônio.

"Se voltar sem proteção, o Marco de Touros vai virar chá", afirma o pesquisador Olavo de Medeiros Filho, 66, do Instituto Histórico e Geográfico do RN.


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