Bruno Barreto descreve terroristas cordiais

'O Que É Isso, Companheiro?' procura se firmar com filme conciliador

Agência Folha 30/04/97 15h24
De São Paulo

A imagem que melhor define "O Que É Isso, Companheiro?" talvez sejam os óculos para cegos usados em diversos momentos, por diferentes personagens. Quem os usa primeiro é o jovem Fernando, codinome Paulo, para ser levado até o local onde seria integrado à guerrilha.

Mais tarde, esses óculos estarão no rosto do embaixador norte-americano Charles Elbrick, sequestrado pelos guerrilheiros (o filme é, em linhas gerais, a descrição do sequestro de Elbrick, da preparação às sequelas).

Bruno Barreto não trata esses óculos como um objeto de cena qualquer. São filmados com muita atenção. São óculos opacos dos dois lados: não permitem ver o olho de quem os usa, nem que seu portador veja o mundo externo.

E talvez esteja nesses óculos opressivamente negros o essencial do que Barreto tem a dizer sobre esse período da história recente do Brasil.

"O Que É Isso, Companheiro?" vê o Brasil da virada dos 60 para os 70 como um momento em que ninguém -da guerrilha aos militares- via exatamente o que acontecia. Seu olhar era toldado, de um modo ou de outro, pelas próprias crenças.

A realidade, que todo mundo acreditava dominar, era uma espécie de jogo de adivinhação.

Pode-se discutir esse ponto de vista. Ele destoa da versão canônica dos opositores do regime militar, segundo a qual guerrilheiros beiram a santidade (é a versão de "Lamarca", de Sérgio Rezende, por exemplo).

Destoa da versão dos militares e partidários, para quem havia uma guerra civil no país, e isso justificava qualquer coisa.

Barreto optou por uma linha clássica: a de um grupo de pessoas colocadas numa situação-limite. Com isso, em vez de descrever "heróis" ou "terroristas", o filme trata de seres comuns envolvidos numa aventura incomum. São valentes, visionários, infantis, autoritários, dementes, inteligentes, intolerantes. Tudo ao mesmo tempo.

Mostrá-los assim poderia ser uma saída pela tangente típica de um momento em que, com a solidificação da democracia, e bem à moda brasileira, tende-se a passar a borracha em torno das diferenças e a conciliar o inconciliável.

Não é bem isso. Barreto faz girar sua observação dos envolvidos na trama em torno de uma definição do homem brasileiro. E essa definição passa, no seu entender, pela cordialidade.

De algum modo, Jonas, o inflexível comandante da ação, parece um ser alienígena plantado entre os demais. De algum modo, porém, sentimos que há nele muito mais bazófia e imitação de uma "atitude revolucionária" do que convicção.

Os demais (inclusive o torturador com crise de consciência) não são seres dotados de uma humanidade calorosa, embora por vezes envolvidos pela rudeza da ação militar. Por exemplo: sentimos que os guerrilheiros não seriam capazes de executar Elbrick.

Eles o compreendem bem demais para ser capazes disso. A cordialidade os cega e imobiliza -pode-se dizer nesse caso específico.

Terão esses personagens existido ou sido assim como o filme descreve? Isso não importa. "O Que É Isso Companheiro?" procura se afirmar como um filme de conciliação. Não por fazer média, como se diz, mas por fixar -encenando um momento de alta crise- certas características do brasileiro.

É verdade que Barreto define o brasileiro de maneira no mínimo generosa (a brutalidade e a barbárie com que convivemos cotidianamente são colocadas em surdina). Mas a exatidão de seu ponto de vista não é relevante, e sim o fato de propor uma observação do período menos comprometida com a partição do mundo entre Bem e Mal.

Um ponto de vista, aliás, é o que sempre faltou ao cinema de Bruno Barreto. É o que seus filmes vinham sonegando desde "A Estrela Sobe" (1974).

Em "O Que É Isso Companheiro?" continua a fazer um cinema conservador, mas tem um ponto de vista, que parece anunciar a maturidade desse cineasta.(Inácio Araujo)