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Gilles Deleuze ganha espaço na Internet

Por Marcelo Rezende 14/11/97 17h27
Agência Folha
De São paulo

Um dia dedicado à palavra e ao pensamento de Gilles Deleuze. Acontece no domingo, para inúmeros usuários da Internet, uma celebração do trabalho do filósofo francês, morto há dois anos. Comemora-se o lançamento da ''Web Deleuze'', que oferece -pela rede mundial de computadores- transcrições (em espanhol, inglês e, naturalmente, francês) dos cursos dados pelo pensador na Universidade Paris 8 e Vincennes-St.Denis, entre 1971 e 1987.

A convocação é feita por Richard Pinhas (ex-aluno e amigo), o principal articulador de um projeto iniciado um ano depois que Deleuze se atirou da janela de sua casa. Tinha, então, 70 anos, e sofria de uma grave doença respiratória. ''Tudo teve início um ano depois da morte de Gilles'', disse Pinhas. Quando fala sobre Deleuze, usa sempre o primeiro nome. Para ele, trata-se do companheiro Gilles.

''Ao lado de três amigos, pedi a Fanny, viúva de Gilles, que me cedesse as fitas dos 60 cursos ministrados. São 500 horas de gravação, em que se pode acompanhar o desenvolvimento de muitos de seus livros, ou a expansão de suas idéias. Havia o acordo inicial com uma editora, a Minuit. Não foi concretizado. Então, a Internet. Colocamos no ar em abril. No início de outubro já tínhamos um bom material.''

As fitas usadas por Pinhas pertencem à Biblioteca Nacional da França, uma doação de Fanny Deleuze. Mas, até outubro do próximo ano, os textos estarão integralmente na rede.

Hoje, já podem ser acessados os cursos sobre a filosofia de Espinosa e Leibniz; quatro lições sobre Kant, uma palestra inédita sobre música (Deleuze reflete sobre o compositor Pierre Boulez) e, ainda, as obras ''O Anti-Édipo'' e ''Mil Platôs'' explicadas em aula entre 1971 e 1979.

A França, disse Pinhas, recebeu com espanto e curiosidade um Deleuze virtual. Entre os companheiros de geração do filósofo, faz um comentário sobre Jacques Derrida: ''Derrida não pensa o virtual. Você acha que ele era um amigo de Deleuze? Eu conheço os verdadeiros amigos de Deleuze, e não conheço Derrida''.

Um grande aventureiro que recusava a posição e a distância clássica entre o mestre e seus ouvintes. Para muitos que frequentaram suas aulas, a denominação aluno é ''um termo impróprio'', conta o professor e tradutor Peter Pál Pelbart, que frequentou Deleuze em St.Denis, entre 1980 e 1982. ''Posso me lembrar de uma verdadeira aventura do pensamento, em que não havia apenas os interessados em filosofia, mas cineastas, pintores, matemáticos e literatos, que terminavam por dar uma qualidade diferenciada aos cursos.''

Deleuze, após entrar na sala, pedia que as pessoas colocassem as carteiras ao seu lado, em círculo: ''Havia um colorido'', disse Pelbart, ''e as pessoas se amontoavam ao redor dele. Havia, então, os japoneses e seus gravadores''.

Fitas e estrangeiros estão também na lembrança do professor italiano Giorgio Passerone, tradutor de Deleuze em seu país, que escreveu em uma revista francesa sobre a última aula, que aconteceu em junho de 1987, ano em que Deleuze abandonou o magistério. ''Havia até mesmo câmeras para filmar o acontecimento. E curiosos, fantasmas, além da habitual etnia com inclinações nômades -os brasileiros, os africanos, os EUA, e os chilenos, japoneses, árabes e os italianos, o indiano e a russa (...) Todos lá para escutar a réplica de Deleuze, pois, como se sabe, um acontecimento é a coisa mais delicada do mundo, que não dá para ser filmada assim.''

Outro que se recorda das aulas é Roberto Machado, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que frequentou os cursos em dois momentos. De 1973 a 1980 e entre 1985 e 1986: ''Deleuze nunca trazia um texto pronto. Ele fazia um maravilhoso esquema de aula, em uma folha escrita à mão, cheia de setas apontando em várias direções. Confeccionava seu pensamento durante a própria aula''.

Tratava-se, sobretudo, disse Pál Pelbart, de ''uma liberdade de criar a filosofia, que para ele era uma caixa de ferramentas: cada um podia pegar o que precisava''. Pelbart realizou a tradução para o português de várias obras de Deleuze. A mais recente, ''Crítica e Clínica'' (ed. 34), acaba de ser lançada no Brasil. No livro, o pensador escreve sobre os escritores D.H. Lawrence, Lewis Carrol e o francês Alfred Jarry, entre outros.
Mais uma obra, agora tendo o filósofo como tema, é '''Deleuze - Clamor do Ser'' (Jorge Zahar Editor), de Alain Badiou.

Badiou, romancista e professor de filosofia na Universidade de Paris 8, escreve sobre ''uma história estranha, a da minha não-relação com Gilles Deleuze. Ele era mais velho do que eu, por outras razões que não a idade''.

Para o próximo ano, a Editora 34 promete o lançamento de ''Empirismo e Subjetividade'', de 1953, e ''O Bergsonismo'', livro originalmente lançado em 1966. A Editora Escuta editará, em 98, ''Dialogues'', de 1977.
Mas a principal atração virá mais uma vez da França e de Richard Pinhas. Em 1972, Pinhas -que também é músico- se reuniu com Deleuze em um estúdio para a gravação de ''Le Voyager'', em que ''Gilles recita textos de Nietzsche para um fundo criado por mim''.

O retorno de ''Le Voyager'' acontecerá em CD no próximo ano. Um produto que provavelmente expandirá a existente atração da música eletrônica pelos escritos deleuzianos.

Dois outros discos que tomaram sua obra por inspiração já chegaram ao mercado: ''Folds and Rhizomes for Gilles Deleuze'' e ''In Memoriam Gilles Deleuze'' (ambos pela gravadora Sub Rosa). Para Pinhas, o fenômeno se explica porque ''Deleuze importa para todos aqueles que pensam a arte'', acrescentando que parte de uma profecia do filósofo Michel Foucault se materializa: ''Foucault escreveu: 'Talvez um dia o século seja deleuziano'. Eu não tenho qualquer dúvida sobre isso. Você ainda tem?''.
O endereço do ''Web Deleuze'' é http://www.imaginet.fr/deleuze.

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