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“Kid Morengueira” gostava de atirar na bossa nova

07/06/2000 03h46
LUIZ TATIT, da Folha de S. Paulo

Moreira da Silva participou da fase de ouro das marchinhas de Carnaval e da consolidação do samba como canção de rádio. Fez sucesso com composições típicas da época _como “É Batucada” (Caninha/Visconde de Bicoíba) ou “Implorar” (Kid Pepe/Germano Augusto/J.S.Gaspar)_, mas, a partir de 1937, teve o seu nome definitivamente identificado com o samba-de-breque e com a malandragem carioca em sua forma mais extravagante.

Mais velho do que Noel Rosa, Custódio Mesquita e Lamartine Babo, que já partiram há tanto tempo, Moreira da Silva sobreviveu a todos os movimentos de transformação da canção brasileira, criando sucessos paralelos à era do samba-canção, à bossa nova, ao rock de Celly Campelo, ao iê-iê-iê e a toda variedade musical do início dos anos 60. Nunca, porém, aceitou o modo de cantar de João Gilberto nem mesmo a exatidão harmônica e rítmica da bossa nova, cuja regularidade costumava chamar de “som de goteira”.

Interessante que o canto intimista do intérprete baiano, tão criticado por Moreira, tem como referência os mesmos princípios que deram origem ao samba-de-breque: as inflexões da fala cotidiana. Naturalmente, o desafio de João Gilberto sempre foi bem mais complexo, pois sua aproximação do coloquial não se deu apenas no plano da pequena intensidade vocal, mas, sobretudo, no propósito de apreender musicalmente as imprecisões da entonação da fala. Moreira da Silva sempre administrou, alternadamente, canto e fala sem jamais permitir que se misturassem num processo único.

Daí a noção de “breque”, palavra que vem do inglês “break” (quebra), hoje muito familiar por definir os movimentos descontínuos de alguns estilos de música negra. O samba-de-breque foi, na verdade, uma decorrência dos malabarismos de encaixe de voz nos sambas sincopados que se formavam naqueles anos 20 e 30. Não foi inventado por Moreira da Silva nem por ninguém em especial. Era a expressão mais audaciosa do controle do canto sobre a fala.

Moreira da Silva, muito hábil em suas execuções vocais, fez do samba-de-breque a matriz de seu estilo de cantor, exacerbando-o a ponto de inaugurar o que poderíamos chamar de “improviso narrativo”: um solo de situações que interrompem o fluxo musical e chegam a configurar um conteúdo independente da letra oficial. Assim como um instrumentista de jazz ortodoxo improvisa a partir de um quadro harmônico e de motivos rítmicos pré-definidos, Moreira elaborava variações frasais sobre o mesmo tema. Seu tom principal era quase sempre o da malandragem. Seus motivos eram as gírias e expressões estereotipadas que descreviam a malícia dos heróis sem caráter.

“Na Subida do Morro”, dele e de Ribeiro da Cunha, talvez seja a tradução mais perfeita de seu estilo, tanto nos breques propriamente ditos como no improviso narrativo. Enquanto esfaqueia o malandro adversário (“Meto-lhe um aço no abdome e tiro fora o seu umbigo”) e descreve a cena sanguinária, no momento crucial, com a peixeira na mão, abre um pequeno parêntese: “Sou de Pernambuco, cidade (sic) que cresce dia a dia, uma beleza maravilhosa...” e volta ao assassinato.

Essa compulsão narrativa acabou transformando Moreira da Silva no personagem Kid Morengueira, vivido em canções que cumpriam enredos de filme de caubói num enfoque popular e bem humorado. Foi a última boa fase do herói que, aliado ao compositor Miguel Gustavo, explorou o filão até exaurir o estilo. São dessa época “O rei do gatilho”, “O rei do cangaço” e outras que tais.

Na verdade, “O Último Malandro” (nome de seu LP de 1958) teve uma sobrevida como Kid Morengueira e a fusão anagramática de Moreira e Morengueira colaborou diretamente para a construção do artista-personagem que, nos últimos tempos, já não separava mais um do outro. Moreira passou a participar das histórias das canções enquanto o Kid Morengueira aparecia nas entrevistas dando tiro para todos os
lados. O alvo preferido, porém, foi sempre a bossa nova.

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