E S P E C I A L
Vale
do Rio Doce

A epopéia do gigante de ferro

Como o Brasil fundou e fez crescer a Vale do Rio Doce, a jóia mais reluzente da coroa estatal.

Veja 22/05/96
De Brasília

Fraca em cobre, boa em ouro e campeã mundial em minério de ferro, a Companhia Vale do Rio Doce é uma estatal diferente. Fundada há mais de meio século sob as sombras da II Guerra Mundial, tornou-se a mais bem-sucedida e ousada empreitada do Estado brasileiro no mundo da produção industrial. Instalada em 140 cidades brasileiras e onze países, é a terceira maior mineradora do mundo. Com 15 500 funcionários e faturamento bruto de 6,2 bilhões de reais, é dona da maior jazida de minério de ferro do planeta, na Serra de Carajás, no Pará, cujo estoque é suficiente para os próximos 400 anos. Com duas estradas de ferro, tem os trilhos mais produtivos do mundo. Nas ferrovias que ligam Carajás a São Luís, no Maranhão, e Vitória, no Espírito Santo, a Itabira, no interior de Minas, o movimento é tal que os trilhos nunca esfriam. Tem o maior trem do planeta, com 204 vagões e três locomotivas. Lidera a produção de ouro na América Latina, com 18 toneladas por ano. É a maior exportadora do país. No ano passado, exportou 1,5 bilhão de reais, o dobro da Autolatina ou quase três vezes mais do que a Petrobrás.

Hoje, quem entra num supermercado para comprar uma lata de cerveja está levando para casa o alumínio da Vale. Quem compra uma bicicleta leva o seu minério de ferro. Numa joalheira, na hora do presente para o Dia das Mães, compra-se o ouro da Vale. Na pilha de rádio, está o seu manganês. No troco do caixa, a moeda tem o seu níquel. A Vale do Rio Doce, com sua produção anual de 130 milhões de toneladas de minérios, está dentro de casa (na lata de óleo), está nas ruas (nos automóveis ou ônibus), está nos escritórios (nos computadores ou nas chaves) e está na escola (na barra espiral dos cadernos).

A Vale do Rio Doce seria uma estatal de quinta categoria se o subsolo do país não fosse rico — por obra da natureza. Mas, sem ela, é provável que boa parte do potencial mineral estivesse dormindo sob a terra, como aconteceu até a sua criação, pelo presidente Getúlio Vargas, em 1º de junho de 1942. O Brasil, na virada do século, era um importador de minério de ferro.

Hoje, depois da Vale, é o maior exportador do mundo. Para chegar lá, a estatal cruzou seu Rubicão de ferro. Passou por crises tão feias que por pouco não foi à falência no final dos anos 40. Encarou desafios enormes, como erguer um complexo industrial em plena selva amazônica, e venceu. Aproveitou-se de golpes de sorte, como a descoberta acidental da maior mina de minério de ferro do mundo. Esperneou como pôde contra a cobiça estrangeira, até dobrar sócios americanos que, por uma década, usaram todo o seu poder de fogo financeiro para controlar a empresa.

Mito - Desde 1942 até hoje, o governo investiu na empresa 1,2 bilhão de dólares e tomou de volta, na forma de lucros, 1,3 bilhão de dólares. O saldo é de 100 milhões, mas o governo só não pegou mais porque preferiu deixar parte do lucro para capitalizar a estatal. No ano passado, pela primeira vez na história, resolveu embolsar todos os dividendos a que tinha direito — levou 70 milhões de dólares. Além disso, nas cinco décadas da Vale, o governo vendeu 49% das suas ações na empresa. Ninguém sabe determinar quanto as vendas renderam ao governo, mas pode-se ter uma idéia de que foi uma boa bolada. Basta ver que a outra metade que o governo ainda não vendeu, os 51% que serão privatizados, está sendo avaliada no mercado entre 6 e 7 bilhões de dólares. Nada mau para quem gastou 1,2 bilhão.

Como é um retrato do esforço nacional para vencer num ramo que exige tanta tecnologia e dinheiro, a Vale também virou a mais mítica das estatais, competindo, aí, com a Petrobrás e seu domínio sobre o ouro negro. Ela arranca do subsolo brasileiro uma massa preta, feia, disforme e a coloca em portos do outro lado do mundo, bonita e reluzente. Mas, na sua biografia, nem tudo é uma sinfonia. Sua rentabilidade é boa, de 10,8%, mas não chega a superar a de empresas do mesmo porte, como a inglesa RTZ. Seu valor de mercado, de uma vez e meia o patrimônio, também não é um colosso. Há quinze dias, o presidente do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros, fez uma radiografia da Vale no Senado. Apresentou dados mostrando que a empresa não é nenhuma potência. Com base num estudo da consultoria americana Merrill Lynch, informou que a rentabilidade da Vale é de 3%, dado que a coloca no fim da fila entre as grandes mineradoras.

Mas há outra forma de analisar esse número. Operando num país que até há pouco tempo vivia uma inflação descontrolada, a Vale, como todas as estatais do país, é obrigada a atualizar seu patrimônio de seis em seis meses. Assim, uma máquina comprada em janeiro, por exemplo, por 200 000 reais chega em julho valendo 210 000 e fecha o ano em 230 000 reais. Isso aumenta o patrimônio da estatal e, portanto, sua rentabilidade, que é calculada sobre o patrimônio, cai.

As demais mineradoras, como não estão em países inflacionários, calculam o seu patrimônio pelo dólar fixo e, com isso, têm aumentada a rentabilidade. Analisada por esse critério, a Vale tem rentabilidade de 10,8%. "É claro que comparar o balanço em épocas de altas taxas de inflação de qualquer empresa brasileira com o balanço de uma empresa de moeda forte é absolutamente um exercício", esclareceu Mendonça de Barros, ao falar para os senadores. O que o presidente do BNDES quis dizer é que a comparação da Merrill Lynch, no fundo, não passa de uma ficção estatística, pois coteja dados distintos.

Malária - Com a privatização à vista, a Vale tem sido alvo de uma disputa política. Quem defende sua venda à iniciativa privada, como Mendonça de Barros, lança mão de números ruins - e pode encontrá-los, sem dificuldade. Quem defende a manutenção da empresa sob controle estatal só fala do seu lado bom, o que também não requer esforço. Nada disso é novidade na história da empresa. Nos tempos de Getúlio Vargas, embates ideológicos se davam até em relação aos mercados que a Vale buscava no mundo. Em 1950, os nacionalistas gritaram contra a empresa porque 80% do seu minério de ferro era exportado para os Estados Unidos, o que consideravam um sinal de dependência excessiva. Mais tarde, em 1953, os conservadores abriram o bico quando a Vale começou a exportar para os países socialistas da Europa para ampliar o seu mercado — a Polônia foi o destino do primeiro embarque experimental. Essa disputa, documentada nos balanços anuais da empresa, mostra como o país acompanhava de perto, passo a passo, a vida de sua deusa de ferro.

Fazia sentido. Erguer a Vale foi uma epopéia. A começar pela ferrovia Vitória a Minas, construída no início do século para ligar o norte de Minas ao mar. A malária matou tantos operários, então chamados genericamente de "baianos", que rendeu até canção recolhida por um folclorista. Diz a música: Coitadinho dos baiano, nem sabe de sua sina. Foro morrê de febre, na estrada Vitória a Minas. Mais tarde, descobre-se que o subsolo de Minas esconde uma tremenda riqueza mineral. Os ingleses correm para a cidade de Itabira, mãe de uma enorme jazida de ferro, e compram todas as terras. Alteram o traçado da ferrovia, para fazê-la passar pela cidade, e formam a Itabira Iron Ore, com sede em Londres, para retirar o minério e exportá-lo. Essa idéia desencadeou uma luta nacionalista que durou vinte anos. Concluída a disputa, a Itabira Iron não havia extraído um níquel de Minas e foi encampada por uma estatal recém-criada — a Vale do Rio Doce.

Carajás - Com o avanço nazista na II Guerra, americanos e ingleses não só concordaram com a encampação pela Vale da Itabira Iron como até a financiaram. Pelo acordo, a Vale se comprometia a exportar 1,5 milhão de toneladas de minério de ferro por ano. Foi um desastre.

Na ferrovia havia 100 descarrilamentos por mês, a empresa acumulava prejuízos e nunca atingiu a meta do 1,5 milhão de toneladas — só chegou lá em 1952, quando a guerra acabara e o mundo não se interessava tanto por seu produto. A Vale achou seu rumo na década de 50, com a Guerra da Coréia. Resolveu suas dívidas com os EUA afastando os administradores americanos que queriam controlar parte da empresa. Abriu novos mercados. Demitiu os agentes que negociavam seu produto no exterior, pois duplicavam o preço da tonelada de minério de ferro, numa queda-de-braço que irritou importadores e lhe rendeu um boicote internacional. Por três meses, a Vale ficou sem assinar um único contrato. Começou a modernizar o complexo mina-ferrovia-porto, mecanizou a extração de minério e preparou seus portos para receber navios de até 350 000 toneladas — coisa astronômica até hoje. Só quatro portos no mundo são capazes de receber navios desse porte. Um é na Holanda, outro no Japão. Os outros dois são da Vale, em Vitória e São Luís.

Seu último grande salto ocorreu em Carajás. Em 1967, um funcionário da US Steel foi despachado para a região à procura de manganês, mas desconfiou que o subsolo tinha mesmo era minério de ferro. A US Steel desprezou sua descoberta. A Vale interessou-se. Foi outra longa queda-de-braço. Dez anos mais tarde, a Vale ficou sozinha com Carajás e apostou todas as suas fichas ali. O projeto era caro demais, 2,4 bilhões de dólares, o preço do minério estava em queda e nem o governo queria tocá-lo para a frente. A Vale insistiu. Hoje, com uma única mina em atividade entre sessenta jazidas, retira 40 milhões de toneladas por ano — e deve-se a Carajás a certeza de que a siderurgia mundial terá fôlego para crescer sem crise até o momento em que ninguém mais estará interessado em aço. Ali, circulam caminhões imensos, altos como um edifício de três andares, e brasileiros de todos os pontos que sujam o rosto e as mãos, como quem toma banho de carvão. Há dez anos, José de Fátima Ribeiro Moraes resolveu trabalhar em Carajás. Recusou um salário mínimo para trabalhar para uma empreiteira em Angola e virou motorista de um caminhão gigante.

Ele sobe onze degraus para chegar à cabine de comando. Ganha 1 300 reais, mora numa boa casa, com dois quartos, tem um Gol do ano na garagem e sonha fazer do filho Renam, 5 anos, um engenheiro da Vale. "Aqui, eu resolvi a minha vida", diz Tamara Abdala Cunha, uma bonita loira de 25 anos que deixou Belém e se transferiu para Carajás com o marido e o filho. Em Carajás, há uma cidade de ferro e esperança. De dia, Tamara, técnica em minas, circula pela mina conferindo detalhes. À noite, está na academia de balé infantil. Com casa, assistência médica e escola, ela e o marido ganham 3 500 reais por mês. Junto com a Vale, caminha o sonho de um país de crescer a ferro e fogo, caminham os brasileiros que trabalham nos confins do país, caminham crateras enormes de subsolo revolto que parecem pinturas expressionistas, fornos que parecem vulcões vomitando lavas de ouro, caminham canções, poemas, caminha a História. Como a Itabira de Carlos Drummond de Andrade, que um dia virou apenas uma fotografia na parede, a Vale também tem o seu destino — o de ser a fotografia de um país.(Expedito Filho)