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Em busca da graça no gramado de Goiânia

A fé tem futuro? Um episódio ocorrido com o craque Ronaldinho durante a permanência da seleção brasileira em Goiânia, na semana passada, aponta ao rumo da falência da religião. Ao final do treino realizado na terça-feira, um punhado de torcedores invadiu o gramado, em busca de contato com os jogadores. Entre eles, uma jovem de cabelos longos e negros, pele clara, vestindo calção negro e camiseta branca, e calçando tênis. O alvo da moça era Ronaldinho, e ao encontrá-lo o impacto foi tão grande que o jogador caiu sentado. Produziu-se então uma imagem extraordinária, captada pelo fotógrafo Paulo Filgueiras e reproduzida na primeira página do jornal O Estado de S.Paulo de quarta-feira.

Ronaldinho está sentado no gramado e a moça, caída a seu lado, pendura-se nele. O braço esquerdo dela enlaça o pescoço dele, e parece fazê-lo com força, pois um par de pessoas tenta puxá-la para desembaraçar o jogador e não consegue. Em contraste, o corpo da moça parece lasso. Está desabado, metade no chão, metade no jogador. Foi tal o esforço para atingir o seu objetivo que agora a moça se desmobiliza e esvazia. O jogador a ampara, mantendo o braço direito nas costas dela. Que cena é essa?

Resposta: é uma Pietà. Pietà é em arte, como o leitor sabe, a cena em que se representa a Virgem Maria acolhendo nos braços o corpo morto de Jesus. No caso, trata-se de uma Pietà invertida _ é o homem que ampara o corpo exangue da mulher. Na mais famosa Pietà, a que está na Basílica de São Pedro, no Vaticano, de autoria de Michelangelo, o corpo de Jesus, estendido no colo da Virgem, é representado de maneira dramaticamente inerte, todo abandono, o braço largado, a cabeça caindo para baixo. De forma similar, o corpo da moça, à exceção do braço, que se mantém alerta no pescoço do craque, é todo abandono. É como se ela experimentasse um transe em que o corpo já não importa. Ela deixou-o de lado porque se transfigurou em puro espírito.

A foto não mostra frontalmete o rosto da moça, mas deixa adivinhar que os olhos estão cerrados e a boca semi-aberta. Para ficar nas obras primas da arte, o que vem à mente agora é o Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, obra de 1646, que fica na Igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma. O corpo da santa, em vez de pesar, como o de Jesus na Pietà de Michelangelo, de tal forma se volatizou que flutua, nas nuvens. No rosto, os olhos cerrados e a boca aberta traduzem a expressão de quem já decolou deste mundo e encontrou o reino do êxtase, como diz o título da obra _ um êxtase que é tão espiritual como físico, a julgar pelo que se conhece de êxtases e expressões faciais. Muitas vezes já se disse que Bernini, nessa escultura, identificou o arrebatamento do espírito ao gozo da carne, o que nos traz de volta a admiradora de Ronaldinho. Que quereria ela do jogador, afinal? Satisfação para o espírito ou para a carne?

Será que ela queria casar com Ronaldinho? Dificilmente. Casamento não deixa de ser um ato racional, que costuma consumar-se só após um período em que se testa se um suporta o outro, embora haja também largo espaço para irracionalidade. Ela queria fazer amor com Ronaldinho? Talvez, mas provavelmente não é tudo o que procurava. Tentemos refazer os passos da moça, naquela tarde, no estádio de Goiânia. Ela vinha de um imenso vazio, quando começou a correr, de uma sensação de ausência de sentido da vida, e disparou em busca da plenitude, da verdade e da luz que identificou em Ronaldinho. Ora, isso é o que ocorreu a São Paulo, ao disparar na Estrada de Damasco, até ser trepassado pela revelação da fé e, assim como a moça caiu na grama, caiu do cavalo. Hoje em dia, o episódio só se repete quando o encontro é com jogador de futebol ou cantor popular. Para milhões de jovens, o mercado de ofertas religiosas não apresenta produto de igual qualidade. Ronaldinho é Deus, para a moça de Goiânia, e não só um deus da bola.



  • "Veja" - 05/03/97