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Pensamentos numa praça de shopping

Antigamente, ia-se à cidade. "Ir à cidade" significava ir ao centro. Ali era o lugar onde se praticavam os atos corriqueiros da vida urbana: fazer compras, resolver problemas numa repartição, ir ao cinema. Os cinemas do centro eram um assombro de luxo e riqueza, competindo entre si em escadarias monumentais e colunatas _ a versão século XX (em sua primeira metade) dos templos numa acrópole grega. Marrocos, Ipiranga, Marabá, Olido, os nomes dos cinemas no centro de São Paulo eram palavrinhas que evocavam fausto e fantasia. Era no tempo que os pobres não existiam, ou, pelo menos, não eram visíveis.

Hoje se vai ao shopping center. O shopping não é só um centro de compras, como se sabe. Mais que isso, cumpre o papel de variante atualizada, sintetizada, depurada, edulcorada e climatizada do centro da cidade. O shopping herdou todas as funções do centro, ou quase. Nele só não há repartição pública e _ por enquanto _ não se mora, como até se podia fazer no centro. Os jovens vão ao shopping para passear e namorar. Não é por acaso que os shoppings têm ruas e praças, com esses nomes mesmo, e bancos para sentar. É porque eles querem, mesmo, imitar e substituir as cidades.

Isso é bom? Mau? O arquiteto Witold Rybczynski, escocês radicado nos Estados Unidos, autor do livro Vida nas Cidades, lançado no Brasil no ano passado (Editora Record), defende os shoppings. Os shoppings, escreve, "são como eram as ruas antes que a indiferença da polícia e os superzelosos defensores dos direitos individuais permitissem que qualquer comportamento, mesmo que anti-social, seja permitido". A decadência do centro das cidades é simultânea à ascensão dos shoppings. Trata-se de um fenômeno americano, importado, em suas duas faces, pelo Brasil. Iguatemi, Eldorado, Ibirapuera, Morumbi _essas são as palavrinhas sedutoras, para um jovem de hoje em São Paulo. O shopping tem a vantagem de reproduzir a cidade, mas sem deixá-la entrar. Andrajoso não entra, prostituta não entra, problema não entra. A Suprema Corte americana decidiu, em 1976, que, sendo domínios particulares, os shoppings não são obrigados a garantir a liberdade de expressão. Qual seja: manifestação também não entra, nem comício.

Em São Paulo, anuncia-se um empreendimento paradoxal: um shopping no centro. O antigo prédio da Light junto ao Viaduto do Chá, abrigará um shopping, a partir do ano que vem. Eis que a instituição inventada para se distanciar do centro, da pobreza, da sujeira _ e, sobretudo, da falta de vagas para estacionamento _, decide estabelecer-se no centro. Trata-se de uma experiência de interesse urbanístico e sociológico _ o casamento de Margareth Street com o shopping de Plattsburgh.

Expliquemos o que é isso. Margareth Street é a rua principal do centro de Plattsburgh, cidade do Estado de Nova York onde mora Witold Rybczynski. Ele gostava de passear no centro, décadas atrás. Hoje, escreve, só vai à Margareth Street quando se sente nostálgico. Quando quer fazer parte da multidão, prefere o shopping.

Como lutar contra o tempo? Os shoppings, admita-se, oferecem os inestimáveis bens da limpeza e da segurança. Mas, por outro lado, padecem do mal de ser cidades de mentira. É como estar diante de um quadro falso. Um Van Gogh falso. Pode ser bem-feito, mas lhe falta a pulsação do artista, a emoção primeva, o sulco da pincelada que, quando a identificamos, nos provoca um arrepio. Nos shoppings, até o clima é artificial. É como a Piazza San Marco, de Veneza, recriada na Disney World. Tem a vantagem de não se contaminar com o mau cheiro que vem da laguna nem estar sujeita a enchentes, mas produz a sensação de que se entrou na História pela porta errada. Os shoppings oferecem um refúgio contra os maus odores, mas desfalcam-nos em algo da noção do que é a vida verdadeira, a vida de verdade.



  • "Veja" - 19/03/97