Primeira páginaÚltimas notíciasPolíticaEconomiaInternacionalEsportesTecnologiaCulturaWelcome    LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

Mais além da TV Senado

Depois de tudo o que se viu na TV Senado e se leu na imprensa acerca da CPI dos títulos precatórios, falta, talvez, sublinhar dois problemas meio deixados de lado. O primeiro tem a ver com as relações entre a União e os Estados e municípios. Tirante os casos de óbvia ladroagem, parte dos títulos precatórios parece ter servido para captar fundos destinados ao pagamento de dívidas estaduais e municipais. O assunto é sério. Haverá, aqui e ali, alguns funcionários probos que deram seguimento a essas operações ilegais porque julgaram ser esse o único meio de pagar o funcionalismo e as dívidas públicas vencidas, de quitar compromissos financeiros de sua administração. É certo que no Estado de Direito não se pode contrapor a legitimidade à legalidade. Num país democrático, como é o caso do Brasil atual, os atos ilegais são forçosamente ilegítimos. Mas o fato é que o malabarismo das finanças públicas e a incúria do Banco Central geraram, ao longo dos anos, dificuldades para os municípios e os Estados.

Como não dispunham de cornucópia _ o corno mitológico que derramava a abundância _ do calibre do Banerj ou do Banespa, muitos prefeitos e governadores apelaram. Envolveram-se com gente agora proclamada duvidosa, mas antes bem introduzida na função pública e nos meios financeiros. Há aí um contencioso que deve ser resolvido com equilíbrio. Pesando-se as sem-razões dos Estados que quitaram suas dívidas passando o mico adiante _ através de bancos estaduais falidos _ e as dos Estados agora acusados de trambiqueiros.

O segundo problema refere-se ao andamento da CPI. Quem assiste às inquirições na TV pode impressionar-se com o formalismo dos debates. Tal senador cita o "parecer exarado" por um funcionário, outro registra seus "encômios" pela observação de um colega. Tudo segue o compasso da mais perfeita ordem republicana. Na realidade, a linguagem bacharelesca dos debates e a teatralidade jurídica do cerimonial escondem a indigência do Direito, a inércia dos tribunais de contas e as responsabilidades do próprio Senado, aprovador compulsivo, algum tempo atrás, da emissão de precatórios estaduais.

De uma maneira mais geral, essa situação retrata o sumiço dos grandes juristas da cena pública nacional. Vai Constituinte, vem plebiscito sobre a forma de governo, discute-se a reeleição, tudo num certo improviso. Tudo na ausência de vozes autorizadas que arbitrem as querelas, fixando as normas jurídicas, restabelecendo a preeminência do Direito. Há psicanalistas, sociólogos, cientistas políticos, economistas, economistas demais e juristas de menos, discorrendo sobre o destino da nação. Num país de arraigado bacharelismo, que dispõe de centenas de faculdades de Direito e de juristas ilustres, essa constatação afigura-se paradoxal. Há, é claro, a herança da ditadura e da inflação de leis extravagantes paridas pelo autoritarismo. Contudo, o atual governo, não obstante seu caráter democrático, também atrapalha. Recentemente, o presidente da República lançou dúvidas sobre o patriotismo do Supremo Tribunal Federal, e seu governo já editou 1 202 medidas provisórias, das quais 77 são de sua própria lavra e as restantes aparecem como reedições dos governos precedentes. Nesse sentido, cabe lembrar a observação do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau. O governo mais corrupto não é o que edita poucas leis, mas o que fabrica muitas leis.



  • "Veja" - 26/03/97