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Astros e facínoras

Na semana passada, o Jornal Nacional brilhou com as imagens de policiais espancando e matando inocentes no meio da rua. Os militares agressores foram identificados e as vítimas foram entrevistadas. Um excelente trabalho. Com cenas de rara brutalidade, a Globo não fez a apologia da violência, mas alertou o país para a necessidade de contê-la. Chocados, os telespectadores, via fax, protestaram. Autoridades da República, dizendo-se envergonhadas, prometeram providências.

Tudo se deu porque a televisão mostrou o que mostrou, e isso merece duas observações. A primeira se refere ao próprio peso da TV no Brasil, que muitas vezes tem sido subestimado. Arbitrariedades da PM acontecem toda semana a céu aberto, em incidentes que contam com testemunhas e que às vezes são noticiados. Mesmo assim, não geram maiores reações. Passam batidas, para usar um termo devido. O dado novo, na semana que passou, não foi portanto a agressão da polícia, mas a visibilidade da agressão. Não foi propriamente o crime dos soldados que levou o governador Mario Covas a pedir desculpas à população, foi a exibição do crime em horário nobre.

Quer dizer: as coisas só acontecem de verdade no Brasil quando aparecem na TV, o que faz dela uma sede, por excelência, do que chamamos de espaço público. A bárbarie policial pode ocorrer diariamente nas praças e calçadas, não importa. Ela só ganha a relevância de prática intolerável quando atinge a dimensão de espetáculo, como se o país só conseguisse enxergar-se através da televisão.

Agora, a segunda observação, um pouco mais pessimista: a TV tem sua parte de responsabilidade na formação desses assassinos. Num tempo em que a legitimidade social cedeu espaço à popularidade, gente da própria polícia busca melhorar sua imagem atuando em telejornais sensacionalistas, como 190 Urgente, Cidade Alerta, Aqui e Agora e na Rota do Crime. Nesse papel deformado, policiais se confundem com justiceiros vingadores, desgarrados de qualquer lei, e cria-se o entendimento de que a força bruta é sua única virtude. Viram astros. Assim, a idolatria da máquina de matar que corresponde a certas fantasias do telespectador mas que nada tem a ver com a função de zelar pela segurança pública acaba contribuindo para o surgimento dos valentões enlouquecidos dentro da tropa. E aí, é claro, eles se voltam contra a sociedade. Viram facínoras.

Que o episódio sirva de reflexão para os que vivem de explorar (e estimular) a violência policial na TV. Um dia podem deixar de ser animadores. E virarem vítimas.



  • "Veja" - 09/04/97