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O ano da saúde e os desmancha-prazeres

A Constituição de 1988 não deixa por menos: os serviços de saúde serão oferecidos de forma universal, integral e gratuita. Aos pobres cabe agradecer tamanha generosidade.

Mas os economistas somos espíritos de porco por profissão, temos a mania de desmanchar prazeres. Com a ajuda de André Medici - mais sabido do que eu em saúde - desembainhamos as calculadoras para exercer nossa triste sina.

Quando era elixir paregórico da cintura para baixo, aspirina para cima e extrema-unção quando não dava certo, a promessa da universalidade, gratuidade e integralidade do serviço de saúde era viável, pois era barato. Mas a tecnologia complicou tudo em um país onde o Estado gasta 90 reais por habitante. Um dia em um bom centro de terapia intensiva custa 1 500 reais (ou seja, a cota anual de dezesseis brasileiros). Uma ponte de safena custa 30 000 reais (equivalente ao gasto médio de 300 pessoas), quase o mesmo que um ano de internamento psiquiátrico de boa qualidade.

Antes de remexer nas continhas, notemos que nenhum país da Europa ou da América do Norte ousou ser tão generoso quanto nossa Constituição. Nos Estados Unidos, o tratamento nem é universal, nem gratuito e todos os planos têm exclusões. Na Europa e no Canadá é universal, nem sempre gratuito e altamente limitado o elenco de serviços oferecidos a todos. Em Cuba é gratuito, mas os tratamentos caros são só para os turistas (pagantes).

Quanto custaria implementar a Constituição? Tomemos um plano generoso como o proporcionado pelo Banco do Brasil aos seus funcionários ( 1310 dólares por ano). Se oferecido a todos os brasileiros, faria o custo da saúde subir a 37% de renda nacional. O custo médio da Golden Cross universalizado para o país comeria 42%. Isso é quatro vezes mais do que gastam os países mais perdulários em saúde.

A promessa de oferecer tudo não é apenas uma lantejoula a mais esvoaçando no mundo da fantasia, mas um monumental fator de injustiça. Como pela regra constitucional todos têm direito a tudo, capturam a parte do leão os mais sabidos, os mais poderosos e os mais próximos dos centros de decisão, bem como os grandes hospitais oferecendo tratamentos sofisticados. Tratamentos que a Europa não tem recursos para oferecer, o nosso sistema não pode negar pela Constituição. As cortes de Justiça dão ganho de causa a quem pedir 120 000 reais para fazer um tratamento quase inútil nos Estados Unidos. Sobra pouco para os outros. Como se fixam prioridades? É de quem chegar primeiro, ficando os pobres, a saúde pública e a prevenção de mãos abanando.

Mas bem sabemos que é no atendimento básico onde se alteram as estatísticas de saúde. Por isso temos estatísticas de saúde. Por isso temos estatísticas de mortalidade infantil de país miserável (45 por 1 000), mas gastamos como país de renda média (220 dólares). No Chile, que gasta 183 dólares por habitante, a mortalidade infantil é de doze por 1 000.

Daí que a verdadeira reforma de saúde tem de começar com um exercício simples mas desagradável: para cada real gasto, quais as intervenções que salvam mais vidas? Quanto temos para gastar (ou quanto poderemos ter fazendo uma forcinha?)? Ordenemos, pois, o custo global de cada intervenção por ordem decrescente de ganhos sobre a saúde, até que se acabem os recursos. Essas contas já foram feitas e sabemos onde são maiores os impactos: prevenção, atendimento materno-infantil, moléstias infecto-contagiosas, endemias, atendimento ambulatorial, nutrição, água e esgoto. Se nossos recursos fossem canalizados para esses gastos, a saúde do brasileiro melhoraria dramaticamente. Só que sobrariam menos recursos públicos para as intervenções mais caras.

Nossas calculadoras trazem um recado desagradável: ou damos tudo a uns poucos ou oferecemos a todos apenas os cuidados médicos necessários simples. Mas há uma boa notícia _ são esses cuidados que têm maior impacto sobre a saúde de um povo.



  • "Veja" - 09/04/97