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Tanta normalidade ainda acaba conosco

Nossa normalidade é assombrosa. Outros países podem se espantar com o que não é normal: uma tragédia, um escândalo. O acontecimento que fere a rotina como uma lâmina fria e faz a vida escapar do controle, como se o mundo balançasse e tudo saísse do lugar. No Brasil, não. O que fere é a normalidade, o que sucede no sossego da vida inabalável de cada dia.

Proponha-se o leitor a um exercício singelo: assistir os filmes que mostram as pancadarias promovidas por PMs, ou recordar-se deles, tal qual foram mostrados na TV, abstraindo das cenas principais. Ignorem-se as pancadarias propriamente ditas, ou o tiro que causou uma morte em São Paulo, e fixe-se a atenção no que acontece entre uma pancadaria e outra, ou paralelamente a elas. Há um momento, no filme feito na Cidade de Deus, no Rio, em que um grupo de soldados conversa e ri. Em outro momento, também no filme do Rio, um soldado faz para outro um gesto de golpear o ar, como se lhe contasse uma façanha esportiva e ilustrasse com o gesto a narração. São signos da normalidade de que se revestia o evento. Entre uma pancadaria e outra, encenavam-se atos de camaradagem despreocupada, como num escritório, no intervalo entre um despacho e outro, ou entre os balconistas de uma loja, entre um cliente e outro.

É a isso, ou mais ou menos isso, que, ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, a filósofa alemã Hannah Arendt chamou de "a banalidade do mal". Eichmann era muito bom funcionário, cumpridor da lei, das ordens e dos horários, e bom sujeito. Sua vida resplandecia de normalidade enquanto, num escritório como outro qualquer, planejava os deslocamentos de massas de judeus para os campos de extermínio. Eichmann contou em seu julgamento, em Jerusalém, que, quando os chefes da SS, a polícia nazista, foram convocados para acertar os ponteiros na implementação da "solução final" _ a execução dos judeus _, mantiveram uma reunião de trabalho de uma hora e meia, ao fim da qual se serviram aperitivos e um almoço. Foi, nas palavras de Eichmann, "uma pequena e íntima reunião social". Pode haver maior normalidade?

Recorra-se à ficção, para imaginar a volta à casa dos PMs da favela Naval e da Cidade de Deus. Um deles chega e a mulher pergunta: "Como foi o trabalho?" Ele responde: "Nada de novo", e vai dormir o sono dos justos. Outro, antes de deitar, brinca com o filho pequeno, que acordou ouvindo o pai empurrar a porta. Outro passa na padaria, aberta àquela hora mesma da madrugada, compra um pão quentinho e o vai mordiscando no caminho. Se não foi assim, não terá sido muito diferente, em matéria de normalidade, o fim daquela noite de trabalho em Diadema, ou daquela outra no Rio, uma noite como as outras.

Agora comtemple o leitor a foto que ilustra esta página. Ela diz respeito a outra brasileiríssima atividade, tão nossa quanto a pancadaria da polícia contra os pobres _ a prostituição infantil. Foi tirada em Manaus, pelo fotógrafo Luiz Carlos Santos, e ilustra uma reportagem do jornal O Globo (23 de março), de autoria do repórter Amaury Ribeiro Jr. Na foto, um senhor cinqüentão, de nome Benício dos Santos, corretor de seguros, beija a bariga de uma menina de 13 anos, num dos estabelecimentos da capital do Amazonas que, às claras, favorecem o encontro entre as crianças e seus clientes. Abstraia agora o leitor da cena principal, tal qual no exercício anterior, e observe o que se passa nos lados e no fundo da foto. Conversa, garrafa de cerveja em cima da mesa, um senhor de óculos escuros voltado para a câmara _ ninguém se abala. Nem se digna a olhar em direção entre o corretor de imóveis e sua tenra presa, de tão banal. De certa forma, o que acontece em volta é mais chocante do que acontece no centro da foto. É o signo da normalidade reinante no ambiente.

É insuportável a normalidade brasileira. Algo de anormal precisa acontecer neste país.



  • "Veja" - 16/04/97